sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Exegese, Teologia e Hermenêutica Bíblicas

Otávio Júlio Torres

1. Exegese

A tarefa da exegese é interpretar os textos bíblicos em si mesmos, em seus próprios termos, sem que haja interferências históricas e conceituais da mentalidade atual[1].

Ela atém-se a cada texto em particular, dando atenção ao seu contexto literário, sua tradição e a fatores extra-textuais, tais como as ciências da antropologia, sociologia, história, ontologia, epistemologia, etc.

O problema da exegese é não fornecer nenhum critério para a verificação do valor de um texto. Em vista disto, a exegese estabelece o seu limite: constitui uma ciência hipotética do texto e isso implica dizer que tudo o que diz do texto depende do método de abordagem adotado. Assim, o resultado da exegese, em relação à totalidade do Cânon Bíblico, revela a existência de uma considerável pluralidade de posições teológicas dentro do conjunto dos textos bíblicos, não permitindo que se conclua que a Bíblia contenha uma só intenção teológica ou uma só experiência de Deus. Abaixo, listamos três métodos exegéticos mais utilizados hoje para a leitura dos textos bíblicos.

1.1. Método(s) histórico –crítico(s)[2]

O método de exegese histórico-crítico propõe um estudo científico dos textos bíblicos. Fundamenta-se na dimensão histórica do texto, que pode fornecer subsídios para a sua devida interpretação. Entende que os textos bíblicos são expressões da revelação divina à humanidade em situações históricas bem concretas e definidas. E por estarem distantes de nós, tais expressões carecem de estudo e aprofundamento especiais, caso queiram ser devidamente entendidas. Essa análise histórica e contextual protege contra a prática prejudicial de extrair sentido dos textos de forma seletiva e arbitrária, priorizando e utilizando unicamente aqueles textos e versículos que coincidem com pontos de vista particulares, sem considerar o contexto original dentro do qual o sentido do texto foi inicialmente formulado e aplicado. Essa busca pelo sentido histórico original ainda protege contra a manipulação indevida do sentido dos textos por interesses ou interpretações meramente subjetivas ou determinadas por posições ideológicas ou de classe social.

O cunho crítico do método, ao ler os textos, visa à correção do seu enquadramento unilateral dentro de certos dogmas ou doutrinas.

A crítica aos autores bíblicos leva a sério a condição de testemunhas humanas da revelação de Deus. Não podemos ser impedidos — em princípio — de averiguar criticamente posições de apóstolos ou evangelistas, se o próprio Paulo não se furtou a criticar Pedro (Gálatas 2.11-21) e se o próprio Jesus não tivesse criticado também os seus discípulos (Marcos 4.40; 8.17-21,33; 10.35-45; 14.27-31), a sagrada tradição dos anciãos (Marcos 7.8-13) e o próprio Antigo Testamento (Mateus 5.21-48; Marcos 7.15; 10.2-12).

Por fim, o método histórico-crítico entende a Bíblia como livro de expressão de fé, diferenciando o que pode ser considerado como sendo histórico-factual e aquilo que, revestido de forma histórica, procura dar testemunho de verdades cridas e vividas no discipulado. “Crítica” significa, neste sentido, fazer uso de um juízo sadio que busca pelas raízes dos textos, seja como eventos históricos que, de fato, ocorreram, seja como expressões de crenças e esperanças que cabiam proclamar.

Os métodos disponíveis são muitos e se definem como ferramentas de análise e síntese para a descrição de fenômenos textuais, lingüísticos ou literários. Dentre outros citamos: Críticas Textual, Filológica, Literária, das Formas, Retórica, da Tradição, da Redação, Leitura Sociológica.

Um aspecto negativo que pesquisadores têm percebido nesse método aponta para um historicismo falacioso, ou uma redução a uma apuração meramente histórica do sentido de um texto, tornando-o prisioneiro de um passado remoto.

1.2. Método Fundamentalista

Parte do pressuposto de que cada detalhe da Bíblia é divinamente inspirado pelo Espírito Santo. Por isso, ela não possuiria erros ou teologias diferentes e até contraditórias. Esse método tende a absolutizar o sentido literal da Bíblia, descartando a participação humana de seus autores, com tudo o que isto implica. O método também corre o perigo de “bibliolatria”, ou seja, de uma idolatria à letra formal dos textos. Contra isso, o apóstolo Paulo adverte que a letra, sem a motivação do espírito, pode ficar velha, ultrapassada, caduca (Romanos 7.6; 2 Coríntios 3.6). Esses textos sugerem que, a cada tempo e contexto, os textos bíblicos se renovam. Por último, a relação do próprio Cristo com as Escrituras do Antigo Testamento mostra que as situações atuais de vida podem relativizar e mesmo fazer uma crítica desses textos (Mateus 5-7; 23.23; Marcos 7.15; 10.2-12).

Seu aspecto positivo parece residir em alguns fatores: 1) a seriedade com que encara a revelação de Deus por meio da sua Palavra, 2) a responsabilidade e compromisso que exige frente à sua mensagem e 3) a insistência sobre o fato de que um livro de fé dificilmente poderá ser interpretado de maneira correta sem o Espírito que rege esta mesma fé (2 Coríntios 4.6).

1.3. Método semântico-estrutural

Esse método está pressuposto na pesquisa da linguagem em que o texto é expresso, que remonta a uma estrutura que lhe dá sentido, graças às ciências dos signos, a semiótica. Esse método acredita que existem na linguagem estruturas universais que podem ser decifradas em qualquer época, mantendo o seu sentido original, exemplo: a lei dos opostos — afirmar uma coisa é negar o seu oposto. Assim, toda vez que, a partir do uso da linguagem, um texto faz uma afirmação, precisamos também avaliar o significado da sua negação, que não está presente nos signos do texto, mas aparece subjacente em sua estrutura. Assim, um texto é capaz de dizer o seu sentido afirmativo, mas, da mesma forma, quer explicitar um sentido negativo, flagrado em sua estrutura.

Por ser um método consideravelmente novo, é bastante difícil detalhá-lo, sobretudo, por causa de seu caráter formal, quase matemático. O domínio desse método depende de um conhecimento de linguagem que excede o domínio das línguas bíblicas, pois seu objetivo é constatar as mensagens dos textos a partir de estruturas lingüísticas universais, ou seja, presentes, de modo geral, em todas as linguagens humanas observáveis.

2. Teologia

É difícil duvidar de que os textos bíblicos são isentos de aspectos teológicos, de experiências humanas com a revelação divina. Assim, os textos bíblicos enfocam a relação entre Deus e o mundo e reivindicam verdades e valor. Qualquer conteúdo que tenha o texto, em termos de informação ou pressuposições (ex.: genealogias, histórias familiares, narrativas de cenários, etc.), sempre representa uma reivindicação de verdade, entendida teologicamente. A questão é que não somos confrontados somente com a teologia de um único texto, de uma única fonte ou livro, como analisa a exegese, mas com a totalidade da Teologia no contexto do cânon bíblico.

A necessidade de uma Teologia Bíblica, então, se estabelece mediante duas razões: (1) As limitações da exegese e (2) a necessidade de uma teologia que compreenda o cânon bíblico em seu conjunto.

Diante disto, a tarefa da Teologia Bíblica é fornecer o grau de verdade ou valor do conjunto do cânon bíblico. Dessa forma, propicia uma auto-evidência e validade para cada texto em particular. Assim, a Teologia Bíblica se fundamenta em um princípio de ordem dedutiva[3], em que a validade do universal compreende o particular.

Isso resolve o problema do cânon dentro do Cânon, ou a priorização de certos textos em detrimento de outros, como, por exemplo, dizer que a revelação do Novo Testamento é mais importante que a revelação do Antigo Testamento.

Na sua tarefa interpretativa, a Teologia procurou, associada à Hermenêutica, por meio dos métodos de decontextualização e recontextualização (ou deconstrução e reconstrução, ou ainda, deconceitualização e reconceitualização) reduzir o distanciamento histórico entre os textos e seus conteúdos com a realidade histórica atual. No entanto, o resultado dessa tentativa trouxe mais problemas: a ligação direta entre o texto e nossa situação atual provocou uma hermenêutica intra-textual (interpretação de textos particulares para fundamentação de práticas e valores de caráter universais para o mundo atual) e não bíblica, gerando diversas interpretações hermenêuticas da Bíblia, constatadas na teologia moderna e na vida das igrejas.

Em suma, a Teologia não se propõe a discernir a verdade e valor de cada texto específico, objetivando seu significado para a realidade atual, mas pretende chegar a resultados universais acerca da Bíblia, que validem tanto os seus conteúdos em particular, como também a possibilidade de uma Teologia Bíblica.

O seu método, portanto, constitui-se na comparação dos textos bíblicos. A verdade e o valor da Bíblia devem transparecer da comparação de seus textos. Isso significa que as teologias do Antigo e Novo Testamentos, quando comparadas, fornecem os critérios para uma Teologia Bíblica, e esta, por sua vez, constitui a verdade e o valor que, em cada texto, podem ser estabelecidos.

Neste processo, a Teologia Bíblica depende dos resultados da exegese, que vão lhe mostrar que a Bíblia contém diversas teologias implícitas. E é essa diversidade teológica inviabiliza uma Teologia Bíblica auto-descritiva (segundo a qual a Bíblia se apresenta como um todo coerente, bastando apenas descrever ou tornar compreensível sua mensagem). Assim, uma vez que a própria Bíblia não se apresenta com uma teologia pronta, acabada, como um todo coerente, é que se faz necessária a construção de uma ciência — a Teologia Bíblica — que seja responsável pela tarefa de demonstrar o conjunto do cânon bíblico como um todo coerente. Por isso, faz-se necessário que a Teologia Bíblica seja construída, conceituada, gerada a partir de um conjunto de questões levantadas e respondidas por nós mesmos, a saber: o que é que constitui a verdade dos textos bíblicos? Por meio de que critérios podem ser discernidos a verdade dos textos bíblicos?

Essas questões, finalmente, concluem que a Bíblia não apresenta apenas uma teologia, não constitui-se num todo coerente e, com isso, definem que a Teologia Bíblica é uma ciência humana, distinta de qualquer pretensão de sacralização ou cristalização universal de seus resultados. Todavia, constitui-se num importante instrumento para a busca da validade de todo o cânon bíblico, não apenas de suas partes.

3. Hermenêutica bíblica

Sua tarefa é mediar o encontro entre os enfoques dos textos bíblicos (resultados do trabalho exegético) e os de situações comparáveis de nossa realidade, tendo como ponto de partida a mútua reivindicação de verdade das partes envolvidas (deduzidas pela Teologia Bíblica). Desse modo, pressupõe os resultados da exegese e da teologia bíblicas. Sua tarefa, além disto, envolve também o encontro entre o valor dos textos bíblicos dentro do todo da Teologia (validados por seus critérios), bem como o encontro dos valores das situações particulares vivenciadas atualmente, dentro da totalidade da própria realidade (significa dizer que os fenômenos particulares devem ser validados pela realidade mais ampla que os constitui. Exemplo: uma fala política de um partido só pode ser interpretada dentro do contexto político global de que faz parte).

Assim, a Hermenêutica Bíblica envolve dois sistemas de significados e suas reivindicações de verdade. Nesse encontro, cada um fala ao outro independentemente; nenhum é o único a falar. E é mediante a comparação dos dois sistemas, após seu encontro, que aparecem os critérios para estabelecer o que é fundamental (aquilo que norteia e o que tem autoridade no texto) e as orientações (estabelecimento de valores, verdades, prescrições éticas) para realidade atual.

Nessa direção, o significado de um texto não constitui necessariamente sua validade (problema da auto-descrição e interpretação)[4]. Diante dessa problemática, a questão decisiva para a Hermenêutica Bíblica é a seguinte pergunta: como estabelecer a verdade de um texto bíblico e seu discernimento dentro do contexto atual, de forma a ser experimentado e confrontado com as reivindicações de verdade próprias do mundo contemporâneo?

4. Bibliografia

ESTUDOS BÍBLICOS, 32. Métodos para ler a Bíblia. Petrópolis: Vozes, São Leopoldo: Sinodal, 1991

KNIERIM, Rolf P. A interpretação do Antigo Testamento (trad. de Paulo Pena Schütz). São Bernardo do Campo: EDITEO, 1990

WEGNER, Uwe e HOEFELMANN, Verner, Manual de exegese. São Leopoldo, agosto de 1997


[1] Todavia, sabe-se que nenhuma pesquisa é totalmente desprovida da subjetividade e participação do pesquisador. Essa constatação da Ciência levou-a a afirmar o mito da neutralidade científica. Assim, a exegese aborda o texto bíblico a partir de um distanciamento consciente.

[2] Para uma pesquisa mais detalhada destes métodos, consulte a Revista ESTUDOS BÍBLICOS, 32. Métodos para ler a Bíblia. Petrópolis: Vozes, São Leopoldo: Sinodal, 1991.

[3] A lógica dedutiva estabelece a validade de uma afirmação, baseada na aceitação de uma premissa (primeiro argumento) universal, para validar um argumento final de ordem particular. Geralmente, o argumento final é precedido de outras duas premissas anteriores. Exemplo: (1ª) Todos os homens são mortais. (2ª) Sócrates é homem. (3ª) Logo, Sócrates é mortal. Na teologia, a argumentação pressupõe o mesmo. Exemplo: (1ª) A Bíblia é verdadeira. (2ª) O livro de Gênesis está na Bíblia. (3ª) Logo, o livro de Gênesis é verdadeiro. Note que o terceiro argumento é particular, mas o primeiro argumento deduz que qualquer livro da Bíblia, em particular, é verdadeiro.

[4] Exemplo: quando a Bíblia afirma no livro de Josué que o sol parou, na verdade, sabe-se hoje que essa afirmação está baseada na percepção cosmologia da época (apropriação da verdade pela observação contemplativa) e não por meio do critério atual, de comprovação científica: na verdade, a única afirmação verdadeira que se pode dizer hoje, em relação ao texto, é de que tenha sido a Terra que parou e não o Sol, haja visto que o Sol é o centro de nosso sistema orbital.

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