sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Como fazer uma análise semântica de um termo bíblico

Otávio Júlio Torres

  1. Usar a concordância para enumerar as passagens nas quais ocorre a palavra analisada;
  2. Estabelecer os contextos em que a expressão ocorre;
  3. Agrupar os textos nos quais a palavra ocorre, separando-os por tipos de texto ou gêneros literários;
  4. Citar as expressões com as quais a palavra aparece mais freqüentemente. Fazer uma lista das palavras que semanticamente são afins ou contrárias à palavra analisada;
  5. Preparar uma matriz na qual se possa agrupar as características semânticas comuns e aquelas que são diversas da palavra a confrontar;
  6. Formular definições da palavra a partir das matizes encontradas.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Família: padrões versus relacionamentos

Otávio Júlio Torres

Dizer que o modelo de família nuclear — pai, mãe e filhos/as — é uma instituição divina é uma afirmação contraditória, embora esta idéia seja muito difundida hoje em dia por lideranças religiosas. Primeiramente, contraditória, porque a Bíblia não apresenta apenas um modelo de constituição familiar. Ao contrário, a experiência bíblica de família testemunha uma variedade marcante de vivências. No contexto do Antigo Testamento, por exemplo, várias são as passagens que referem-se a famílias poligâmicas (em que o homem tem mais cônjuges) e clânicas (ajuntamento de diversos casais e seus respectivos filhos/as consangüíneos, provavelmente até terceira e quarta gerações, e incluía também viúvos/as, órfãos/as, escravos/as, servos/as e estrangeiros/as.

Além dessas variações no aspecto social, os relacionamentos familiares na Bíblia também não eram vitalícios. Embora creiamos que Deus não se alegra com a divisão da família, Jesus mesmo considera a possibilidade do divórcio, da separação e desencontro de um casal (texto). Esse segundo aspecto demonstra com mais ênfase ainda a impossibilidade de a família ser uma instituição divina, pois entendemos por instituição divina apenas a Ceia do Senhor e o Batismo. Isso porque somente estes são sacramentos por ordenamento de Jesus. Dizer que algo é sagrado, divino é afirmar sua imutabilidade, sua invariabilidade, mesmo diante de mudanças históricas, humanas.

Sendo assim, não é possível que a família seja uma instituição divina. A Bíblia não afirma isso! Se a família fosse de fato divina, sagrada, ou seja, indissolúvel, intocável, como os sacramentos da Ceia e o do Batismo, sem a possibilidade de sofrer mudanças a partir da vontade humana, como explicar tantas transformações encontradas no interior da família no decorrer do processo histórico da humanidade? Confessamos que desconhecemos uma resposta satisfatória a esta questão, se partirmos da concepção de que a família é uma instituição divina.

É por acreditar que a família é uma instituição divina é que muitos cristãos e cristãs têm defendido também que existe um padrão divino para as relações familiares. Pensar que cada membro da família tem funções predeterminadas e imutáveis é uma proposta que exclui, limita e tolhe uma busca mais plena e interativa de relacionamentos conjugais e familiares que promovam a vida. Essa idéia de padrão divino para as relações familiares ainda dificulta a compreensão da graça, que proporciona ao ser humano um relacionamento mais próximo e livre com Deus e com o semelhante.

Acredito que, em vez de lutarmos por um “padrão divino” para a família, seria mais bíblico encontrar caminhos para nossas famílias em que a vida e o bem-estar de seus membros fossem priorizados. Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo é cumprimento de toda a Lei (Mateus 22.37-40). A proposta, portanto, desta pastoral, é mostrar que a Bíblia, ao narrar relações familiares, não apresenta um modelo que deva ser seguido como uma proposta divina no decorrer de toda a história humana. Diferentemente disto, a Bíblia reafirma que a família está envolvida no processo histórico da humanidade e, nesse sentido, sofre mudanças e se reorganiza, muitas vezes, sob novas formas. Por isso, ao lermos o Antigo Testamento, podemos perceber que foi muito tranqüilo para o povo de Israel viver sob uma organização familiar poligâmica (Gênesis 16.3; 1 Samuel 1.1-2; 2 Samuel 5.13). Já no Novo Testamento, a carta a Timóteo traz uma nova orientação para o dirigente da comunidade: O diácono seja marido de uma só mulher... (1 Timóteo 3.12).

Dessa forma, não precisamos nos espantar ao encontrar no seio de nossas Igrejas famílias constituídas por avôs e seus netos e netas, mães sozinhas com seus filhos, famílias adotivas (com crianças que não foram geradas biologicamente pelo casal), casais sem filhos, amigos que decidem morar juntos, etc. Podemos ver nesses casos não uma distorção da realidade familiar, mas novas formas de ser e estar juntos. Gosto muito de uma frase, dita por uma criança e recontada por Déa Kerr Afini, que diz: “Lar é uma porção de gentes que se amam”. Essa, sim, é a verdadeira constituição familiar, segundo o ensino do Mestre, no qual os laços de amor são a real fonte e fundamento da vida.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Exegese, Teologia e Hermenêutica Bíblicas

Otávio Júlio Torres

1. Exegese

A tarefa da exegese é interpretar os textos bíblicos em si mesmos, em seus próprios termos, sem que haja interferências históricas e conceituais da mentalidade atual[1].

Ela atém-se a cada texto em particular, dando atenção ao seu contexto literário, sua tradição e a fatores extra-textuais, tais como as ciências da antropologia, sociologia, história, ontologia, epistemologia, etc.

O problema da exegese é não fornecer nenhum critério para a verificação do valor de um texto. Em vista disto, a exegese estabelece o seu limite: constitui uma ciência hipotética do texto e isso implica dizer que tudo o que diz do texto depende do método de abordagem adotado. Assim, o resultado da exegese, em relação à totalidade do Cânon Bíblico, revela a existência de uma considerável pluralidade de posições teológicas dentro do conjunto dos textos bíblicos, não permitindo que se conclua que a Bíblia contenha uma só intenção teológica ou uma só experiência de Deus. Abaixo, listamos três métodos exegéticos mais utilizados hoje para a leitura dos textos bíblicos.

1.1. Método(s) histórico –crítico(s)[2]

O método de exegese histórico-crítico propõe um estudo científico dos textos bíblicos. Fundamenta-se na dimensão histórica do texto, que pode fornecer subsídios para a sua devida interpretação. Entende que os textos bíblicos são expressões da revelação divina à humanidade em situações históricas bem concretas e definidas. E por estarem distantes de nós, tais expressões carecem de estudo e aprofundamento especiais, caso queiram ser devidamente entendidas. Essa análise histórica e contextual protege contra a prática prejudicial de extrair sentido dos textos de forma seletiva e arbitrária, priorizando e utilizando unicamente aqueles textos e versículos que coincidem com pontos de vista particulares, sem considerar o contexto original dentro do qual o sentido do texto foi inicialmente formulado e aplicado. Essa busca pelo sentido histórico original ainda protege contra a manipulação indevida do sentido dos textos por interesses ou interpretações meramente subjetivas ou determinadas por posições ideológicas ou de classe social.

O cunho crítico do método, ao ler os textos, visa à correção do seu enquadramento unilateral dentro de certos dogmas ou doutrinas.

A crítica aos autores bíblicos leva a sério a condição de testemunhas humanas da revelação de Deus. Não podemos ser impedidos — em princípio — de averiguar criticamente posições de apóstolos ou evangelistas, se o próprio Paulo não se furtou a criticar Pedro (Gálatas 2.11-21) e se o próprio Jesus não tivesse criticado também os seus discípulos (Marcos 4.40; 8.17-21,33; 10.35-45; 14.27-31), a sagrada tradição dos anciãos (Marcos 7.8-13) e o próprio Antigo Testamento (Mateus 5.21-48; Marcos 7.15; 10.2-12).

Por fim, o método histórico-crítico entende a Bíblia como livro de expressão de fé, diferenciando o que pode ser considerado como sendo histórico-factual e aquilo que, revestido de forma histórica, procura dar testemunho de verdades cridas e vividas no discipulado. “Crítica” significa, neste sentido, fazer uso de um juízo sadio que busca pelas raízes dos textos, seja como eventos históricos que, de fato, ocorreram, seja como expressões de crenças e esperanças que cabiam proclamar.

Os métodos disponíveis são muitos e se definem como ferramentas de análise e síntese para a descrição de fenômenos textuais, lingüísticos ou literários. Dentre outros citamos: Críticas Textual, Filológica, Literária, das Formas, Retórica, da Tradição, da Redação, Leitura Sociológica.

Um aspecto negativo que pesquisadores têm percebido nesse método aponta para um historicismo falacioso, ou uma redução a uma apuração meramente histórica do sentido de um texto, tornando-o prisioneiro de um passado remoto.

1.2. Método Fundamentalista

Parte do pressuposto de que cada detalhe da Bíblia é divinamente inspirado pelo Espírito Santo. Por isso, ela não possuiria erros ou teologias diferentes e até contraditórias. Esse método tende a absolutizar o sentido literal da Bíblia, descartando a participação humana de seus autores, com tudo o que isto implica. O método também corre o perigo de “bibliolatria”, ou seja, de uma idolatria à letra formal dos textos. Contra isso, o apóstolo Paulo adverte que a letra, sem a motivação do espírito, pode ficar velha, ultrapassada, caduca (Romanos 7.6; 2 Coríntios 3.6). Esses textos sugerem que, a cada tempo e contexto, os textos bíblicos se renovam. Por último, a relação do próprio Cristo com as Escrituras do Antigo Testamento mostra que as situações atuais de vida podem relativizar e mesmo fazer uma crítica desses textos (Mateus 5-7; 23.23; Marcos 7.15; 10.2-12).

Seu aspecto positivo parece residir em alguns fatores: 1) a seriedade com que encara a revelação de Deus por meio da sua Palavra, 2) a responsabilidade e compromisso que exige frente à sua mensagem e 3) a insistência sobre o fato de que um livro de fé dificilmente poderá ser interpretado de maneira correta sem o Espírito que rege esta mesma fé (2 Coríntios 4.6).

1.3. Método semântico-estrutural

Esse método está pressuposto na pesquisa da linguagem em que o texto é expresso, que remonta a uma estrutura que lhe dá sentido, graças às ciências dos signos, a semiótica. Esse método acredita que existem na linguagem estruturas universais que podem ser decifradas em qualquer época, mantendo o seu sentido original, exemplo: a lei dos opostos — afirmar uma coisa é negar o seu oposto. Assim, toda vez que, a partir do uso da linguagem, um texto faz uma afirmação, precisamos também avaliar o significado da sua negação, que não está presente nos signos do texto, mas aparece subjacente em sua estrutura. Assim, um texto é capaz de dizer o seu sentido afirmativo, mas, da mesma forma, quer explicitar um sentido negativo, flagrado em sua estrutura.

Por ser um método consideravelmente novo, é bastante difícil detalhá-lo, sobretudo, por causa de seu caráter formal, quase matemático. O domínio desse método depende de um conhecimento de linguagem que excede o domínio das línguas bíblicas, pois seu objetivo é constatar as mensagens dos textos a partir de estruturas lingüísticas universais, ou seja, presentes, de modo geral, em todas as linguagens humanas observáveis.

2. Teologia

É difícil duvidar de que os textos bíblicos são isentos de aspectos teológicos, de experiências humanas com a revelação divina. Assim, os textos bíblicos enfocam a relação entre Deus e o mundo e reivindicam verdades e valor. Qualquer conteúdo que tenha o texto, em termos de informação ou pressuposições (ex.: genealogias, histórias familiares, narrativas de cenários, etc.), sempre representa uma reivindicação de verdade, entendida teologicamente. A questão é que não somos confrontados somente com a teologia de um único texto, de uma única fonte ou livro, como analisa a exegese, mas com a totalidade da Teologia no contexto do cânon bíblico.

A necessidade de uma Teologia Bíblica, então, se estabelece mediante duas razões: (1) As limitações da exegese e (2) a necessidade de uma teologia que compreenda o cânon bíblico em seu conjunto.

Diante disto, a tarefa da Teologia Bíblica é fornecer o grau de verdade ou valor do conjunto do cânon bíblico. Dessa forma, propicia uma auto-evidência e validade para cada texto em particular. Assim, a Teologia Bíblica se fundamenta em um princípio de ordem dedutiva[3], em que a validade do universal compreende o particular.

Isso resolve o problema do cânon dentro do Cânon, ou a priorização de certos textos em detrimento de outros, como, por exemplo, dizer que a revelação do Novo Testamento é mais importante que a revelação do Antigo Testamento.

Na sua tarefa interpretativa, a Teologia procurou, associada à Hermenêutica, por meio dos métodos de decontextualização e recontextualização (ou deconstrução e reconstrução, ou ainda, deconceitualização e reconceitualização) reduzir o distanciamento histórico entre os textos e seus conteúdos com a realidade histórica atual. No entanto, o resultado dessa tentativa trouxe mais problemas: a ligação direta entre o texto e nossa situação atual provocou uma hermenêutica intra-textual (interpretação de textos particulares para fundamentação de práticas e valores de caráter universais para o mundo atual) e não bíblica, gerando diversas interpretações hermenêuticas da Bíblia, constatadas na teologia moderna e na vida das igrejas.

Em suma, a Teologia não se propõe a discernir a verdade e valor de cada texto específico, objetivando seu significado para a realidade atual, mas pretende chegar a resultados universais acerca da Bíblia, que validem tanto os seus conteúdos em particular, como também a possibilidade de uma Teologia Bíblica.

O seu método, portanto, constitui-se na comparação dos textos bíblicos. A verdade e o valor da Bíblia devem transparecer da comparação de seus textos. Isso significa que as teologias do Antigo e Novo Testamentos, quando comparadas, fornecem os critérios para uma Teologia Bíblica, e esta, por sua vez, constitui a verdade e o valor que, em cada texto, podem ser estabelecidos.

Neste processo, a Teologia Bíblica depende dos resultados da exegese, que vão lhe mostrar que a Bíblia contém diversas teologias implícitas. E é essa diversidade teológica inviabiliza uma Teologia Bíblica auto-descritiva (segundo a qual a Bíblia se apresenta como um todo coerente, bastando apenas descrever ou tornar compreensível sua mensagem). Assim, uma vez que a própria Bíblia não se apresenta com uma teologia pronta, acabada, como um todo coerente, é que se faz necessária a construção de uma ciência — a Teologia Bíblica — que seja responsável pela tarefa de demonstrar o conjunto do cânon bíblico como um todo coerente. Por isso, faz-se necessário que a Teologia Bíblica seja construída, conceituada, gerada a partir de um conjunto de questões levantadas e respondidas por nós mesmos, a saber: o que é que constitui a verdade dos textos bíblicos? Por meio de que critérios podem ser discernidos a verdade dos textos bíblicos?

Essas questões, finalmente, concluem que a Bíblia não apresenta apenas uma teologia, não constitui-se num todo coerente e, com isso, definem que a Teologia Bíblica é uma ciência humana, distinta de qualquer pretensão de sacralização ou cristalização universal de seus resultados. Todavia, constitui-se num importante instrumento para a busca da validade de todo o cânon bíblico, não apenas de suas partes.

3. Hermenêutica bíblica

Sua tarefa é mediar o encontro entre os enfoques dos textos bíblicos (resultados do trabalho exegético) e os de situações comparáveis de nossa realidade, tendo como ponto de partida a mútua reivindicação de verdade das partes envolvidas (deduzidas pela Teologia Bíblica). Desse modo, pressupõe os resultados da exegese e da teologia bíblicas. Sua tarefa, além disto, envolve também o encontro entre o valor dos textos bíblicos dentro do todo da Teologia (validados por seus critérios), bem como o encontro dos valores das situações particulares vivenciadas atualmente, dentro da totalidade da própria realidade (significa dizer que os fenômenos particulares devem ser validados pela realidade mais ampla que os constitui. Exemplo: uma fala política de um partido só pode ser interpretada dentro do contexto político global de que faz parte).

Assim, a Hermenêutica Bíblica envolve dois sistemas de significados e suas reivindicações de verdade. Nesse encontro, cada um fala ao outro independentemente; nenhum é o único a falar. E é mediante a comparação dos dois sistemas, após seu encontro, que aparecem os critérios para estabelecer o que é fundamental (aquilo que norteia e o que tem autoridade no texto) e as orientações (estabelecimento de valores, verdades, prescrições éticas) para realidade atual.

Nessa direção, o significado de um texto não constitui necessariamente sua validade (problema da auto-descrição e interpretação)[4]. Diante dessa problemática, a questão decisiva para a Hermenêutica Bíblica é a seguinte pergunta: como estabelecer a verdade de um texto bíblico e seu discernimento dentro do contexto atual, de forma a ser experimentado e confrontado com as reivindicações de verdade próprias do mundo contemporâneo?

4. Bibliografia

ESTUDOS BÍBLICOS, 32. Métodos para ler a Bíblia. Petrópolis: Vozes, São Leopoldo: Sinodal, 1991

KNIERIM, Rolf P. A interpretação do Antigo Testamento (trad. de Paulo Pena Schütz). São Bernardo do Campo: EDITEO, 1990

WEGNER, Uwe e HOEFELMANN, Verner, Manual de exegese. São Leopoldo, agosto de 1997


[1] Todavia, sabe-se que nenhuma pesquisa é totalmente desprovida da subjetividade e participação do pesquisador. Essa constatação da Ciência levou-a a afirmar o mito da neutralidade científica. Assim, a exegese aborda o texto bíblico a partir de um distanciamento consciente.

[2] Para uma pesquisa mais detalhada destes métodos, consulte a Revista ESTUDOS BÍBLICOS, 32. Métodos para ler a Bíblia. Petrópolis: Vozes, São Leopoldo: Sinodal, 1991.

[3] A lógica dedutiva estabelece a validade de uma afirmação, baseada na aceitação de uma premissa (primeiro argumento) universal, para validar um argumento final de ordem particular. Geralmente, o argumento final é precedido de outras duas premissas anteriores. Exemplo: (1ª) Todos os homens são mortais. (2ª) Sócrates é homem. (3ª) Logo, Sócrates é mortal. Na teologia, a argumentação pressupõe o mesmo. Exemplo: (1ª) A Bíblia é verdadeira. (2ª) O livro de Gênesis está na Bíblia. (3ª) Logo, o livro de Gênesis é verdadeiro. Note que o terceiro argumento é particular, mas o primeiro argumento deduz que qualquer livro da Bíblia, em particular, é verdadeiro.

[4] Exemplo: quando a Bíblia afirma no livro de Josué que o sol parou, na verdade, sabe-se hoje que essa afirmação está baseada na percepção cosmologia da época (apropriação da verdade pela observação contemplativa) e não por meio do critério atual, de comprovação científica: na verdade, a única afirmação verdadeira que se pode dizer hoje, em relação ao texto, é de que tenha sido a Terra que parou e não o Sol, haja visto que o Sol é o centro de nosso sistema orbital.

A profecia em Israel

Otávio Júlio Torres

Introdução
Definir o ministério profético na Bíblia não é uma tarefa fácil. No Antigo Testamento, não é muito claro o que vem a ser um profeta, ou pelo menos, encontramos textos que definem esse ministério a partir de diferentes atividades por ele executadas. Segundo Deuteronômio 13.2 e 4, o profeta é aquele que interpreta sonhos. Em 1 Samuel 28.6 e 15, é aquele que consulta a Deus. Já em Amós 7.12, o profeta recebe pelo trabalho que executa, é uma profissão oficial da corte real.
Portanto, não é possível chegar a uma delimitação exata do ministério profético na Bíblia, nem mesmo padronizar a sua atuação dentro de sistemas que permitam uma definição uniforme da sua atividade. Todavia, este texto tem o objetivo de situar questões que podem ser observadas dentro do movimento profético bíblico, de forma que se estabeleça características gerais desse ministério dentro do cânon bíblico vetero-testamentário.

1. Definições
A variedade da atuação profética na Bíblia é tão expressiva que não convém definir a profecia no Antigo Testamento em termos de um único ministério. É mais prudente falar em ministérios proféticos, a partir da atuação e incorporação do termo pessoal, no singular, profeta. Assim, as definições de profecia ou ministério profético apresentadas aqui serão baseadas nas características pessoais de cada profeta ou grupo de profetas, ou até mesmo, delimitas por períodos proféticos dentro do Antigo Testamento. Nesta direção, tendo como ponto de partida, uma definição bem geral, profeta é aquele que interpreta a vontade de Deus diante de circunstâncias concretas da vida de seu povo. Em linhas gerais, o profeta é aquele que denuncia e critica quando o povo se afasta de Deus e anuncia e exorta à esperança quando a situação de sofrimento e petição do povo reclama uma resposta de libertação da parte de Deus. Assim, o ministério profético na Bíblia se sustenta basicamente em dois pilares: denúncia e anúncio.
O profeta denuncia toda e qualquer atividade que nega o princípio da justiça divina e, ao mesmo tempo, anuncia a Palavra da parte de Deus, movido por uma esperança, nascida da sua experiência e intimidade com Deus. Nessa perspectiva, todas as pessoas chamadas por Deus são, em algum momento de seus ministérios, profetisas e profetas dele. Ou seja, colocam-se como representantes da vontade e da Palavra de Deus diante do povo.
O fundamento do ministério profético na Bíblia, portanto, é anunciar a salvação, a bênção de Deus, e denunciar as injustiças e pecados humanos, ou seja, proferir as sentenças de julgamento de Deus, estimulando o povo à conversão.
É comum ainda verificar que a profecia surge ao mesmo tempo do estabelecimento da nação de Israel, marcado pela implantação da monarquia. A razão disso está no fato de que no sistema de organização tribal, cada tribo tinha seu próprio sistema de governo e sua própria constituição religiosa, baseada na fé Javista. Neste período, que se estende até a época dos juízes, a tarefa de julgar o povo e mantê-lo dentro dos preceitos legais da Tora (livros da lei), ficava a cargo dos anciãos de cada tribo e, em tempos de crise, nas mãos dos juízes, levantados por Deus para liderar o povo.
Com o advento da monarquia, da unificação das tribos em torno de um rei, surgem também os profetas, que se colocam como representantes da Palavra e ação de Deus diante do rei e de todo o povo.

2. A profecia extática
Compreende-se por profecia extática, os primeiros tempos da atuação profética da narrativa bíblica, que se estende até o século VIII a.C., quando a profecia atinge a experiência escrita, com os chamados profetas literários, que correspondem aos livros de Isaías a Malaquias, segundo o índice da Bíblia protestante.
A profecia extática é conhecida a partir do que chamamos de Escola de Profetas. Esta é uma nomenclatura usada para distinguir os nevi’im que surgiram antes dos profetas escritores. Estas formas anteriores de profetas no Antigo Testamento se distinguem em, pelo menos, três grupos distintos:
a) Grupos Extáticos - estes nevi’im andavam livremente pelo país afora, eram músicos que buscavam no êxtase um estado de transe para assim proferirem suas mensagens. Observa-se nesta categoria a presença de Saul (1 Sm 10: 5), dos profetas de Baal (1 Reis 18:19-40). À luz de I Samuel 9:9, parecem ter sido grupos religiosos patriotas de moços, aos quais Samuel procurava transformar numa força religiosa-moral, em relação às tribos, que eram ameaçadas pelas práticas religiosas de outros povos, como os filisteus(Jz 2:16-17; 1 Sm 9:16; 7:3; 10:11).
b) Filhos dos profetas - é uma outra forma primitiva que se formava em derredor duma figura de destaque (Eliseu, Elias), a quem chamavam de mestre ou pai, a cujos pés assentavam e aprendiam, e com quem moravam em habitações comunitárias (2 Rs 2:1).
c) Profetas Rituais - tinham seu lugar lado a lado com o sacerdote no culto e influenciavam também a corte real.
É também desse período que vem os termos que determinam a atividade profética. São eles:
- Navi’ = é a palavra hebraica mais usada para designar a pessoa do profeta ou sua função e significa profetizar, chamar ou proclamar(ativo). Ser profeta é ser chamado para proclamar(passivo). É bom lembrar que várias figuras nas narrativas bíblicas receberam o título de navi, como por exemplo: Abraão (Gn 20.7); Moisés (Dt 34.10) e Arão (Ex 7.1).
- Ro’eh e Rozeh = vidente. O profeta é também conhecido como aquele que vê aquilo que outras pessoas não vêem.ou Rozeh. O vidente tem a capacidade de revelar segredos ocultos e eventos futuros. No caso dele, ressaltam-se as visões.
- ’Ix (ou ’sch, ou ainda, ’ish) ha’ elohim = homem de Deus. Este título expressa a estreita associação da pessoa com Deus. Esta estreita relação dos profetas com Deus é expressa igualmente pelo nome “homem de Deus”, que quase só aparece nas narrativas sobre Samuel, Elias e Eliseu (ver 1Samuel 2:27; 9:6; 2 Reis 17:18; 4:9).
- bene hanebi’im = filhos dos profetas. Dizem respeito aos discípulos que se reunião junto ao homem de Deus (’ix ha’ elohim, 2 Rs 2.3,5,7,15; 4.1,38).
É importante, pois, perceber que o vocábulo “ministério profético” no Antigo Testamento nos leva a generalizações. Falar de profeta, a partir de uma unidade literária definida, é uma ilusão. Nas fontes bíblicas, o uso dos termos acima descritos é feito indistintamente para referir-se a atividades realizadas no contexto da ação divina. Gerhard Von Rad exemplifica que Gad exerce às vezes as funções de “vidente de Davi” (hozeh, 2 Sm 24.11), às vezes a de “profeta” (navi’, 1 Sm 22.5). Amós é chamado “vidente” (hozeh) por Amatsia, e ele responde que não é “profeta” (navi’, Am 7.12). Em 1 Samuel 9.9, “profeta” e “vidente” (ro’eh) são considerados como sinônimos; mas constata-se que o uso das palavras evoluiu com o tempo (veja mais adiante no item 2.2. A profecia histórica). Em 1 Reis 13 fala-se de um “homem de Deus” vindo de Judá, enquanto seu colega vindo de Betel leva o título de “profeta”; mais adiante, o texto elimina esta distinção, fazendo dizer ao homem de Judá: “também eu sou profeta como tu” (1Rs 13.18).
A profecia extática ainda é definida a partir da atuação pública do profeta que se estabelece em termos individuais. Ou seja, o profeta, no exercício do seu ofício, não atua nacionalmente, mas limita-se em pequenas atividades, sobretudo milagrosas (como exemplo, ler as narrativas que encerram os profetas Elias e Eliseu). Além disso, a confirmação de sua atividade está alicerçada na constatação da possessão da divindade, que torna possível seus feitos sobrenaturais. Às vezes, as experiências extáticas causavam certo espanto (1Sm 10.5ss) e entendia-se ser contagioso; podia transmitir-se a qualquer um simplesmente pelo fato de se aproximar de um grupo de inspirados (1 Sm 10.18ss). Até o século VIII, com os primeiros profetas literários, era comum um linguajar que utilizava palavras como “espumar” ou “babar” no sentido de “profetizar” (Am 7.16; Mq 2.6,11). Também se designava um profeta pelo temo de meschuga (louco, 2Rs 9.11).

3. A profecia histórica
Diz respeito a um tipo de literatura ou estilo literário encontrado na Bíblia. No caso, do Antigo Testamento corresponde à segunda parte do Cânon Protestante. Quatro profetas maiores e os doze profetas menores escritos entre os séculos VIII e V antes de Cristo. Contém uma vasta coletânea de oráculos divinos. Os termos menores e maiores relacionam-se com o tamanho dos escritos e não com a sua importância. Este tipo de literatura deve ser lida a partir dos períodos históricos demarcados pelos textos e, por isso, a grande dificuldade dos leitores da profecia é compreender corretamente a função e a forma dessa profecia. Cada profeta literário tinha sua própria maneira de compreender a história, baseado em tradições antigas, como a Aliança, o Êxodo, as tradições de Sião, etc., para daí interpretar a Palavra de Deus para o seu tempo. O profeta volta ao passado para tirar alguma lição, para comprovar alguma situação no presente (Jr 23. 13-15), a capacidade de ver, analisar a história passada e se colocar diante de Deus, com a convicção de que a Palavra de Deus se fez ouvir em seu interior, para depois transmitir ao povo. Nos profetas literários, enfatizam-se as palavras (Isaías 30:10), mais acentuadamente que as experiências extáticas, sobrenaturais.
A profecia histórica é caracterizada pela utilização da escrita, que tornava possível ao profeta proferir seus oráculos em momento posterior à sua experiência com Deus (Jr 36.1-6; 45.1-5). Neste sentido, há uma tendência acentuada em definir o ministério do profeta a partir do termo navi’ em detrimento aos outros encontrados até a atividade de Amós e Miquéias, do século VIII. Para os profetas literários, a validade da sua profecia se encontra mais vinculada à palavra falada do que qualquer outra experiência. Por isso, raramente se verá no profetismo literário experiências extáticas.
A base do ministério profético literário, na comunicação da Palavra de Deus, acontece mediante a denúncia e o anúncio situados historicamente. Em linhas gerais, os profetas denunciam a injustiça nos tribunais, o comércio ilícito, a escravidão, tributos e impostos, roubo, assassinatos, luxos e riquezas à custa do trabalhador empobrecido, contra o direito legal dos órfãos e viúvas (Am 2.8; 3.9-11,15; 4.15.1,10-12,15; 6.1,4-7;8.4-6; Is 1.10-17,21-26; 3.12,14,16-4.1; 5.23; 9.1-6;10.1-4; 11.1-9; 32.1-8).
Em vista disso, destacam-se as seguintes características da profecia histórica:
- Não é simples predição.
- É proclamação das intenções de Javé em relação a seu povo e ao mundo.
- Pressupõe um certo auditório, destinatário; dirige-se a um público particular, responde a uma determinada situação e, neste sentido, não se fundamenta em abstrações. Implica tempo e lugar bem determinados.
- É pregação dirigida a um momento determinado da história de Israel. Por isso, é preciso conhecer tal momento para compreendê-la (Is 28.23-29).
- Está ligada à história. Pressupõe uma aliança entre Javé e Israel. Assume a missão de confirmar a validade desse pacto e lembrar suas implicações. Transmite a cada geração a Palavra que Javé outrora deu aos patriarcas, a atualiza e reavalia em função das diferentes situações, nas quais o povo se encontra (Is 51.1-2).
- Intervém nas horas críticas da história, quando Israel se desvia de Javé e sucumbe a todas as tentações oferecidas pelo mundo em redor. A profecia retifica e corrige o povo de Deus. Recoloca-o diante da Palavra divina, chamando-o à fé e exigindo que tome decisões imediatas, que decidirão seu futuro.
Baseado nestas considerações, Severino Croatto, define o profeta literário, como aquele que “interpreta a vontade de seu Deus em circunstâncias concretas da vida de seu povo, denuncia e critica quando este se desvia e se afasta de Javé, anuncia e exorta à esperança quando se converte ou quando a situação de sofrimento reclama uma promessa de libertação” .

4. As três linhas de ação dos profetas
O apelo à conversão e à mudança feito pelos profetas passa por três caminhos: os caminhos da justiça, da solidariedade e da piedade (experiência pessoa com Deus). Não se trata de três caminhos distintos, como se cada profeta pudesse escolher o caminho que mais lhe agrada, deixando de lados os dois outros. Mas, os três são unidos entre si. Um caminho não é possível sem os outros dois.
Justiça sem solidariedade e sem piedade torna-se mera ação política sem humanidade e não atinge o mais profundo do ser humano. Politiza e endurece a ação. Vence a razão, mas não atinge o coração.
Solidariedade sem justiça e sem piedade, torna-se mera filantropia como a de clubes humanitários, muitas vezes, a serviço da manutenção de sistemas que geram empobrecimento. Correr esse risco, é levar a consciência ao engano, neutralizar o grito do pobre e impedir o surgimento da justiça no seio da comunidade.
Piedade sem justiça e sem solidariedade torna-se mística alienada, sem fundamento na realidade e sem fundamento na tradição da Bíblia. Ofende a Deus, pois o transforma em ídolo e engana as pessoas empobrecidas, que se fazem submissos à injustiça.

Conclusão
Podemos concluir que:
- O ministério profético se manifesta na Bíblia, a partir de diferentes experiências. Isso acontece, pois, a profecia se destina a responder a questões que estão acontecendo na vida e história humana. Trata-se da intervenção divina no mundo, por meio de seus profetas.
- Na história bíblica, há diversas posturas proféticas. Encontramos os profetas que anunciam a Deus por intermédio de operações milagrosas a pessoas específicas, como no caso do ministério de Elias e Eliseu (profecia extática). Também há profetas que atuam a partir da proclamação da Palavra de Deus, dirigida à nação, aos seus líderes ou a pessoas em particular (profecia histórica).
- A mensagem dos profetas bíblicos sempre tem o objetivo de conduzir o povo a Deus, seja pela palavra de julgamento (advertência seguida de sentença e chamado ao arrependimento) ou proclamação do perdão e bênção de Deus.
- A atuação profética também mostra um forte engajamento político e social. O profeta fala ao rei e à liderança do povo, advertindo-os a cumprirem fielmente seus ministérios, segundo as orientações de Deus.
- Finalmente, cabe aqui uma palavra aos profetas de hoje, àqueles que são fiéis às palavras dos profetas bíblicos e falam em nome de Deus. É muito comum, hoje em dia, ouvirmos pessoas se colocarem na condição dos profetas bíblicos e trazerem novidades em relação à palavra revelada na Bíblia, dizendo ter recebido revelação nova de Deus, como profeta. As escrituras bíblicas nos alertam quanto a esse tipo de falso profeta, quando Jesus afirma no evangelho de Mateus 11.11, 13-15: “Digo-lhes a verdade: Entre os nascidos de mulher não surgiu ninguém maior do que João Batista;... Pois todos os Profetas e a Lei profetizaram até João. E se vocês quiserem aceitar, este é o Elias que havia de vir. Aquele que tem ouvidos ouça!”. Assim, qualquer nova profecia que surja, ou seja, qualquer nova palavra ou novo profeta que exceda, em sua palavra, a profecia e os profetas bíblicos devem ser tomados por falsos, enganadores (Mateus 24.11; 24.24; 1 João 4.1), “cordeiros vestidos de lobo” (Mateus 7.15).


Bibliografia
Revista de Interpretação Bíblica Latino-ammericana (RIBLA). Os livros proféticos: a voz dos profetas e suas releituras. Sinodal: São Leopoldo, Vozes: Petrópolis, 2000
Em Marcha. O ministério dos profetas no Antigo Testamento. Imprensa Metodista: São Paulo, 1993
CRB. A leitura profética da história. Publicações CRB: Rio de Janeiro, Loyola: São Paulo, 1994 (Coleção: Tua Palavra é Vida, 03)
CROATTO, José Severino. A estrutura dos livros proféticos. As releituras dentro do corpus profético. In: RIBLA. Os livros proféticos: a voz dos profetas e suas releituras. Petrópolis: Vozes, São Leopoldo: Sinodal, 2000
VON RAD, Gerhard. Teologia do Antigo Testamento II. São Paulo: ASTE, 1986