sexta-feira, 6 de agosto de 2010

A profecia em Israel

Otávio Júlio Torres

Introdução
Definir o ministério profético na Bíblia não é uma tarefa fácil. No Antigo Testamento, não é muito claro o que vem a ser um profeta, ou pelo menos, encontramos textos que definem esse ministério a partir de diferentes atividades por ele executadas. Segundo Deuteronômio 13.2 e 4, o profeta é aquele que interpreta sonhos. Em 1 Samuel 28.6 e 15, é aquele que consulta a Deus. Já em Amós 7.12, o profeta recebe pelo trabalho que executa, é uma profissão oficial da corte real.
Portanto, não é possível chegar a uma delimitação exata do ministério profético na Bíblia, nem mesmo padronizar a sua atuação dentro de sistemas que permitam uma definição uniforme da sua atividade. Todavia, este texto tem o objetivo de situar questões que podem ser observadas dentro do movimento profético bíblico, de forma que se estabeleça características gerais desse ministério dentro do cânon bíblico vetero-testamentário.

1. Definições
A variedade da atuação profética na Bíblia é tão expressiva que não convém definir a profecia no Antigo Testamento em termos de um único ministério. É mais prudente falar em ministérios proféticos, a partir da atuação e incorporação do termo pessoal, no singular, profeta. Assim, as definições de profecia ou ministério profético apresentadas aqui serão baseadas nas características pessoais de cada profeta ou grupo de profetas, ou até mesmo, delimitas por períodos proféticos dentro do Antigo Testamento. Nesta direção, tendo como ponto de partida, uma definição bem geral, profeta é aquele que interpreta a vontade de Deus diante de circunstâncias concretas da vida de seu povo. Em linhas gerais, o profeta é aquele que denuncia e critica quando o povo se afasta de Deus e anuncia e exorta à esperança quando a situação de sofrimento e petição do povo reclama uma resposta de libertação da parte de Deus. Assim, o ministério profético na Bíblia se sustenta basicamente em dois pilares: denúncia e anúncio.
O profeta denuncia toda e qualquer atividade que nega o princípio da justiça divina e, ao mesmo tempo, anuncia a Palavra da parte de Deus, movido por uma esperança, nascida da sua experiência e intimidade com Deus. Nessa perspectiva, todas as pessoas chamadas por Deus são, em algum momento de seus ministérios, profetisas e profetas dele. Ou seja, colocam-se como representantes da vontade e da Palavra de Deus diante do povo.
O fundamento do ministério profético na Bíblia, portanto, é anunciar a salvação, a bênção de Deus, e denunciar as injustiças e pecados humanos, ou seja, proferir as sentenças de julgamento de Deus, estimulando o povo à conversão.
É comum ainda verificar que a profecia surge ao mesmo tempo do estabelecimento da nação de Israel, marcado pela implantação da monarquia. A razão disso está no fato de que no sistema de organização tribal, cada tribo tinha seu próprio sistema de governo e sua própria constituição religiosa, baseada na fé Javista. Neste período, que se estende até a época dos juízes, a tarefa de julgar o povo e mantê-lo dentro dos preceitos legais da Tora (livros da lei), ficava a cargo dos anciãos de cada tribo e, em tempos de crise, nas mãos dos juízes, levantados por Deus para liderar o povo.
Com o advento da monarquia, da unificação das tribos em torno de um rei, surgem também os profetas, que se colocam como representantes da Palavra e ação de Deus diante do rei e de todo o povo.

2. A profecia extática
Compreende-se por profecia extática, os primeiros tempos da atuação profética da narrativa bíblica, que se estende até o século VIII a.C., quando a profecia atinge a experiência escrita, com os chamados profetas literários, que correspondem aos livros de Isaías a Malaquias, segundo o índice da Bíblia protestante.
A profecia extática é conhecida a partir do que chamamos de Escola de Profetas. Esta é uma nomenclatura usada para distinguir os nevi’im que surgiram antes dos profetas escritores. Estas formas anteriores de profetas no Antigo Testamento se distinguem em, pelo menos, três grupos distintos:
a) Grupos Extáticos - estes nevi’im andavam livremente pelo país afora, eram músicos que buscavam no êxtase um estado de transe para assim proferirem suas mensagens. Observa-se nesta categoria a presença de Saul (1 Sm 10: 5), dos profetas de Baal (1 Reis 18:19-40). À luz de I Samuel 9:9, parecem ter sido grupos religiosos patriotas de moços, aos quais Samuel procurava transformar numa força religiosa-moral, em relação às tribos, que eram ameaçadas pelas práticas religiosas de outros povos, como os filisteus(Jz 2:16-17; 1 Sm 9:16; 7:3; 10:11).
b) Filhos dos profetas - é uma outra forma primitiva que se formava em derredor duma figura de destaque (Eliseu, Elias), a quem chamavam de mestre ou pai, a cujos pés assentavam e aprendiam, e com quem moravam em habitações comunitárias (2 Rs 2:1).
c) Profetas Rituais - tinham seu lugar lado a lado com o sacerdote no culto e influenciavam também a corte real.
É também desse período que vem os termos que determinam a atividade profética. São eles:
- Navi’ = é a palavra hebraica mais usada para designar a pessoa do profeta ou sua função e significa profetizar, chamar ou proclamar(ativo). Ser profeta é ser chamado para proclamar(passivo). É bom lembrar que várias figuras nas narrativas bíblicas receberam o título de navi, como por exemplo: Abraão (Gn 20.7); Moisés (Dt 34.10) e Arão (Ex 7.1).
- Ro’eh e Rozeh = vidente. O profeta é também conhecido como aquele que vê aquilo que outras pessoas não vêem.ou Rozeh. O vidente tem a capacidade de revelar segredos ocultos e eventos futuros. No caso dele, ressaltam-se as visões.
- ’Ix (ou ’sch, ou ainda, ’ish) ha’ elohim = homem de Deus. Este título expressa a estreita associação da pessoa com Deus. Esta estreita relação dos profetas com Deus é expressa igualmente pelo nome “homem de Deus”, que quase só aparece nas narrativas sobre Samuel, Elias e Eliseu (ver 1Samuel 2:27; 9:6; 2 Reis 17:18; 4:9).
- bene hanebi’im = filhos dos profetas. Dizem respeito aos discípulos que se reunião junto ao homem de Deus (’ix ha’ elohim, 2 Rs 2.3,5,7,15; 4.1,38).
É importante, pois, perceber que o vocábulo “ministério profético” no Antigo Testamento nos leva a generalizações. Falar de profeta, a partir de uma unidade literária definida, é uma ilusão. Nas fontes bíblicas, o uso dos termos acima descritos é feito indistintamente para referir-se a atividades realizadas no contexto da ação divina. Gerhard Von Rad exemplifica que Gad exerce às vezes as funções de “vidente de Davi” (hozeh, 2 Sm 24.11), às vezes a de “profeta” (navi’, 1 Sm 22.5). Amós é chamado “vidente” (hozeh) por Amatsia, e ele responde que não é “profeta” (navi’, Am 7.12). Em 1 Samuel 9.9, “profeta” e “vidente” (ro’eh) são considerados como sinônimos; mas constata-se que o uso das palavras evoluiu com o tempo (veja mais adiante no item 2.2. A profecia histórica). Em 1 Reis 13 fala-se de um “homem de Deus” vindo de Judá, enquanto seu colega vindo de Betel leva o título de “profeta”; mais adiante, o texto elimina esta distinção, fazendo dizer ao homem de Judá: “também eu sou profeta como tu” (1Rs 13.18).
A profecia extática ainda é definida a partir da atuação pública do profeta que se estabelece em termos individuais. Ou seja, o profeta, no exercício do seu ofício, não atua nacionalmente, mas limita-se em pequenas atividades, sobretudo milagrosas (como exemplo, ler as narrativas que encerram os profetas Elias e Eliseu). Além disso, a confirmação de sua atividade está alicerçada na constatação da possessão da divindade, que torna possível seus feitos sobrenaturais. Às vezes, as experiências extáticas causavam certo espanto (1Sm 10.5ss) e entendia-se ser contagioso; podia transmitir-se a qualquer um simplesmente pelo fato de se aproximar de um grupo de inspirados (1 Sm 10.18ss). Até o século VIII, com os primeiros profetas literários, era comum um linguajar que utilizava palavras como “espumar” ou “babar” no sentido de “profetizar” (Am 7.16; Mq 2.6,11). Também se designava um profeta pelo temo de meschuga (louco, 2Rs 9.11).

3. A profecia histórica
Diz respeito a um tipo de literatura ou estilo literário encontrado na Bíblia. No caso, do Antigo Testamento corresponde à segunda parte do Cânon Protestante. Quatro profetas maiores e os doze profetas menores escritos entre os séculos VIII e V antes de Cristo. Contém uma vasta coletânea de oráculos divinos. Os termos menores e maiores relacionam-se com o tamanho dos escritos e não com a sua importância. Este tipo de literatura deve ser lida a partir dos períodos históricos demarcados pelos textos e, por isso, a grande dificuldade dos leitores da profecia é compreender corretamente a função e a forma dessa profecia. Cada profeta literário tinha sua própria maneira de compreender a história, baseado em tradições antigas, como a Aliança, o Êxodo, as tradições de Sião, etc., para daí interpretar a Palavra de Deus para o seu tempo. O profeta volta ao passado para tirar alguma lição, para comprovar alguma situação no presente (Jr 23. 13-15), a capacidade de ver, analisar a história passada e se colocar diante de Deus, com a convicção de que a Palavra de Deus se fez ouvir em seu interior, para depois transmitir ao povo. Nos profetas literários, enfatizam-se as palavras (Isaías 30:10), mais acentuadamente que as experiências extáticas, sobrenaturais.
A profecia histórica é caracterizada pela utilização da escrita, que tornava possível ao profeta proferir seus oráculos em momento posterior à sua experiência com Deus (Jr 36.1-6; 45.1-5). Neste sentido, há uma tendência acentuada em definir o ministério do profeta a partir do termo navi’ em detrimento aos outros encontrados até a atividade de Amós e Miquéias, do século VIII. Para os profetas literários, a validade da sua profecia se encontra mais vinculada à palavra falada do que qualquer outra experiência. Por isso, raramente se verá no profetismo literário experiências extáticas.
A base do ministério profético literário, na comunicação da Palavra de Deus, acontece mediante a denúncia e o anúncio situados historicamente. Em linhas gerais, os profetas denunciam a injustiça nos tribunais, o comércio ilícito, a escravidão, tributos e impostos, roubo, assassinatos, luxos e riquezas à custa do trabalhador empobrecido, contra o direito legal dos órfãos e viúvas (Am 2.8; 3.9-11,15; 4.15.1,10-12,15; 6.1,4-7;8.4-6; Is 1.10-17,21-26; 3.12,14,16-4.1; 5.23; 9.1-6;10.1-4; 11.1-9; 32.1-8).
Em vista disso, destacam-se as seguintes características da profecia histórica:
- Não é simples predição.
- É proclamação das intenções de Javé em relação a seu povo e ao mundo.
- Pressupõe um certo auditório, destinatário; dirige-se a um público particular, responde a uma determinada situação e, neste sentido, não se fundamenta em abstrações. Implica tempo e lugar bem determinados.
- É pregação dirigida a um momento determinado da história de Israel. Por isso, é preciso conhecer tal momento para compreendê-la (Is 28.23-29).
- Está ligada à história. Pressupõe uma aliança entre Javé e Israel. Assume a missão de confirmar a validade desse pacto e lembrar suas implicações. Transmite a cada geração a Palavra que Javé outrora deu aos patriarcas, a atualiza e reavalia em função das diferentes situações, nas quais o povo se encontra (Is 51.1-2).
- Intervém nas horas críticas da história, quando Israel se desvia de Javé e sucumbe a todas as tentações oferecidas pelo mundo em redor. A profecia retifica e corrige o povo de Deus. Recoloca-o diante da Palavra divina, chamando-o à fé e exigindo que tome decisões imediatas, que decidirão seu futuro.
Baseado nestas considerações, Severino Croatto, define o profeta literário, como aquele que “interpreta a vontade de seu Deus em circunstâncias concretas da vida de seu povo, denuncia e critica quando este se desvia e se afasta de Javé, anuncia e exorta à esperança quando se converte ou quando a situação de sofrimento reclama uma promessa de libertação” .

4. As três linhas de ação dos profetas
O apelo à conversão e à mudança feito pelos profetas passa por três caminhos: os caminhos da justiça, da solidariedade e da piedade (experiência pessoa com Deus). Não se trata de três caminhos distintos, como se cada profeta pudesse escolher o caminho que mais lhe agrada, deixando de lados os dois outros. Mas, os três são unidos entre si. Um caminho não é possível sem os outros dois.
Justiça sem solidariedade e sem piedade torna-se mera ação política sem humanidade e não atinge o mais profundo do ser humano. Politiza e endurece a ação. Vence a razão, mas não atinge o coração.
Solidariedade sem justiça e sem piedade, torna-se mera filantropia como a de clubes humanitários, muitas vezes, a serviço da manutenção de sistemas que geram empobrecimento. Correr esse risco, é levar a consciência ao engano, neutralizar o grito do pobre e impedir o surgimento da justiça no seio da comunidade.
Piedade sem justiça e sem solidariedade torna-se mística alienada, sem fundamento na realidade e sem fundamento na tradição da Bíblia. Ofende a Deus, pois o transforma em ídolo e engana as pessoas empobrecidas, que se fazem submissos à injustiça.

Conclusão
Podemos concluir que:
- O ministério profético se manifesta na Bíblia, a partir de diferentes experiências. Isso acontece, pois, a profecia se destina a responder a questões que estão acontecendo na vida e história humana. Trata-se da intervenção divina no mundo, por meio de seus profetas.
- Na história bíblica, há diversas posturas proféticas. Encontramos os profetas que anunciam a Deus por intermédio de operações milagrosas a pessoas específicas, como no caso do ministério de Elias e Eliseu (profecia extática). Também há profetas que atuam a partir da proclamação da Palavra de Deus, dirigida à nação, aos seus líderes ou a pessoas em particular (profecia histórica).
- A mensagem dos profetas bíblicos sempre tem o objetivo de conduzir o povo a Deus, seja pela palavra de julgamento (advertência seguida de sentença e chamado ao arrependimento) ou proclamação do perdão e bênção de Deus.
- A atuação profética também mostra um forte engajamento político e social. O profeta fala ao rei e à liderança do povo, advertindo-os a cumprirem fielmente seus ministérios, segundo as orientações de Deus.
- Finalmente, cabe aqui uma palavra aos profetas de hoje, àqueles que são fiéis às palavras dos profetas bíblicos e falam em nome de Deus. É muito comum, hoje em dia, ouvirmos pessoas se colocarem na condição dos profetas bíblicos e trazerem novidades em relação à palavra revelada na Bíblia, dizendo ter recebido revelação nova de Deus, como profeta. As escrituras bíblicas nos alertam quanto a esse tipo de falso profeta, quando Jesus afirma no evangelho de Mateus 11.11, 13-15: “Digo-lhes a verdade: Entre os nascidos de mulher não surgiu ninguém maior do que João Batista;... Pois todos os Profetas e a Lei profetizaram até João. E se vocês quiserem aceitar, este é o Elias que havia de vir. Aquele que tem ouvidos ouça!”. Assim, qualquer nova profecia que surja, ou seja, qualquer nova palavra ou novo profeta que exceda, em sua palavra, a profecia e os profetas bíblicos devem ser tomados por falsos, enganadores (Mateus 24.11; 24.24; 1 João 4.1), “cordeiros vestidos de lobo” (Mateus 7.15).


Bibliografia
Revista de Interpretação Bíblica Latino-ammericana (RIBLA). Os livros proféticos: a voz dos profetas e suas releituras. Sinodal: São Leopoldo, Vozes: Petrópolis, 2000
Em Marcha. O ministério dos profetas no Antigo Testamento. Imprensa Metodista: São Paulo, 1993
CRB. A leitura profética da história. Publicações CRB: Rio de Janeiro, Loyola: São Paulo, 1994 (Coleção: Tua Palavra é Vida, 03)
CROATTO, José Severino. A estrutura dos livros proféticos. As releituras dentro do corpus profético. In: RIBLA. Os livros proféticos: a voz dos profetas e suas releituras. Petrópolis: Vozes, São Leopoldo: Sinodal, 2000
VON RAD, Gerhard. Teologia do Antigo Testamento II. São Paulo: ASTE, 1986

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