quinta-feira, 29 de julho de 2010

Toda Escritura é divinamente inspirada para o ensino...

Otávio Júlio Torres

Alusivo ao dia da Bíblia.

Nunca se fez tão necessário, como nos dias de hoje, apegar-se às palavras das Escrituras bíblicas, como Timóteo é orientado a fazê-lo (2 Timóteo 3.14-17). Dias marcados pelo enfraquecimento e desvalorização da Escola Dominical (como lugar privilegiado para o estudo da Bíblia); dias marcados pelo esvaziamento dos ambientes destinados ao estudo bíblico. Isto é tão notório que há confissões cristãs surgidas e baseadas, exclusivamente, em celebrações cúlticas de oração e libertação.


Certamente, este é um serviço importante a ser prestado pela Igreja em dias de "multidões de ovelhas sem pastor", como bem destacou Jesus. Entretanto, também não deve ser relegado ao segundo plano ou descartado o valor que Jesus reservou ao ensino. Os estudiosos da Bíblia concordam amplamente que Jesus tenha dedicado, nos relatos dos Evangelhos, cerca de 50% do seu tempo ao ensino das Escrituras. Os outros 50% foram dedicados à evangelização (pregação do Reino) e à libertação (operação de sinais e maravilhas).

Dito isto, é nosso objetivo neste texto, dedicado às comemorações do Dia da Bíblia, partilhar, à luz do metodismo, dois enfoques possíveis de interpretação bíblica: (1) A interpretação dos textos bíblicos a partir de nossa experiência de fé, ou seja, no contexto da nossa vida diária; e (2) a interpretação da Bíblia a partir de procedimentos científicos, que procuram desvendar o sentido que o texto representava para o local, época e comunidades nos quais foi formulado.

O primeiro enfoque consiste numa abordagem prática, direcionada a captar a mensagem dos textos para o hoje da fé e do discipulado. E o segundo é uma tarefa que tem na ciência o seu fundamento. Não obstante, ambos são contemplados positivamente no ambiente dos escritos bíblicos (Lucas 1.1-4; Atos 7.22; 1 Pedro 3.15).

Na história do Metodismo, vemos também essas duas vertentes. Como declararam Carlos e João Wesley: "Vamos unir duas coisas há tempos separadas: a ciência e a piedade vital".João Wesley dizia que nenhuma formulação teológica, por melhor estruturada que fosse, poderia ser anterior à vivência da fé e do amor, na vida cristã: "Quanto mais deve ser o amor preferido... à própria verdade sem amor" (Sermões I). No entanto, isso não significa que ele fosse indiferente à questão da verdade, alimentando atitudes pietistas extremadas ou avessas à reflexão teológica. Para Wesley, a compreensão teológica nos serve como instrumento a serviço da fé e da vida cristãs.

A Bíblia é, para Wesley, a autoridade suprema e definitiva em termos de reflexão teológica. Todavia, ele evita sabiamente enveredar pelos caminhos tortuosos da exegese (explicação interpretativa) literalista e do biblicismo. E, por isso, desenvolveu uma estrutura teológica bem configurada, seguindo passos e procedimentos metodológicos bastante nítidos, que conhecemos como quadrilátero metodista, tendo a Bíblia ao centro:

Experiência
Razão

Bíblia
Criação Tradição




A tradição, para Wesley, significava a valorização da experiência histórica da Igreja Cristã. Ele considerava sua formação anglicana, reafirmava o valor dos escritos antigos da Igreja, bem como os concílios e credos ecumênicos dos Reformadores. Mas, entendia que o significado pleno da fé em Cristo não pode ser compreendido unicamente por meio do conhecimento da tradição. Daí, o valor inestimável da experiência.

A experiência atualiza a convicção viva da transformação que Cristo realiza em nós (João 9.25). Wesley, entretanto, também sabia que somente a experiência pessoal é insuficiente para uma interpretação bíblica responsável. Uma teologia construída exclusivamente na experiência dá margem para o subjetivismo e o fanatismo.

Por isso, a razão desempenha um papel insubstituível na reflexão teológica e na experiência da fé. Ela equivale ao bom senso ou ao senso comum humano. Ela evita os exageros de determinadas aplicações de textos bíblicos que não consideram, por exemplo, o seu contexto próprio, que indica as particularidades de seu uso. Ele recomenda: "Faça à razão tudo o que ela pode; usai-a até onde ela pode ir".

Por último, Wesley destaca que a Criação de Deus também se nos apresenta como critério para compreendermos a revelação divina (Salmo 19.1). Salienta que, ao observarmos a Criação, adquirimos algum conhecimento de Deus.

No seu prefácio aos Sermões, Wesley apresenta resumidamente seu método interpretativo. Os textos entre parênteses e em negrito são destaques nossos:

"Há alguma dúvida acerca do significado do que leio? Alguma coisa parece obscura e de difícil compreensão? Elevo o meu coração para o Pai das luzes: Senhor - não é palavra tua? - 'se alguém tem necessidade de sabedoria, peça-a a Deus'. Tu a dás 'liberalmente e sem recriminações'. Tu disseste: 'se alguém quiser fazer a tua vontade conhecerá'. Desejo fazê-la; deixa-me conhecer a tua vontade (neste trecho aparece o uso da experiência pessoal de Wesley com Deus). Então, busco e pondero passagens paralelas da Escritura, 'conferindo coisas espirituais com espirituais' (aqui aparece o uso da Bíblia). Medito nelas, com toda a atenção e determinação de que minha mente é capaz (uso da razão). Se alguma dúvida ainda permanece, consulto os que são experimentados nas coisas de Deus e, depois, os escritos pelos quais, mesmo mortos, ainda falam (uso da tradição). Aquilo que assim aprendo, isso ensino."

Concluindo, é mister lembrar a advertência deixada em Hebreus 4.12: "Porque a palavra de Deus é... mais cortante do que qualquer espada de dois gumes". E uma espada em mãos erradas - seja nas mãos de quem não sabe manuseá-la, seja na mão de quem a usa para praticar o mal - pode gerar a morte. Assim, Dave Hunt, em seu livro "Escapando da Sedução", alerta a igreja sobre o perigo de, no desejo sincero de comunicar o Evangelho, cair no modernismo. Isto é, transformar a mensagem do Evangelho numa pregação aceitável pelas pessoas com a adoção de ideias do mercado consumista, revestidas de um vocabulário bíblico, para oferecê-las como verdades do Evangelho para o mundo. Por isso, em nossa comemoração ao dia da Bíblia, vale a pena destacar o método wesleyano, visando evitar leituras das Escrituras contrárias ao próprio Evangelho nelas anunciado.

Glossário:

Exegese: Explicação interpretativa da Bíblia que obedece a procedimentos científicos. Exemplo: Filologia (estudo das línguas originais, hebraico e grego), Crítica Textual (analisa e sugere correções aos diversos manuscritos dos textos da Bíblia), Crítica Literária (estuda os textos sob o ponto de vista da sua produção literária - autoria, estilo de redação, coesão e estrutura interna do texto, etc.).

Biblicismo: Apego exagerado à Bíblia para explicar todos os fatos passados, presentes e futuros. A Bíblia conteria, assim, as respostas a todas as questões, sem considerar as limitações próprias de tempo, cultura e espaço experimentados pelos autores bíblicos.

Exegese literalista: Credibilidade total à letra do texto bíblico, sem perguntar pelo contexto gerador do escrito e sua intenção.

Fanatismo: Excessivo zelo religioso, que nega a voz da razão; adesão cega a uma doutrina.

Pietista: palavra que remete a um grupo religioso dos tempos de Wesley e desde os primeiros reformadores. Sua ênfase era a piedade pessoal, com amplo uso de jejuns, orações, e obras de misericórdia, como assistência aos pobres, órfãos, viúvas, etc. Sua ênfase nas questões morais era muito elevada. Eram radicais em sua busca de perfeccionismo e seu nível de exigência quanto à fé e à prática era muito elevado.

Subjetivismo: Sistema de pensamento relativo à pessoa que somente admite suas ideias como verdadeiras, mesmo que não haja fundamentação ou argumentação que as valide.

Planeta Terra: o que será dele no fim dos tempos?

Texto em resposta a essa pergunta, elaborada por um membro da igreja.

Bem, como metodistas, o que mais nos importa é a pregação da salvação, é levar as pessoas a Jesus Cristo. As diferenças doutrinárias são importantes para nos ajudar entender o caminho que percorremos na fé, mas não é fundamento, ou seja o mais importante. O critério da Salvação em Cristo é para nós, metodistas, portanto, o único ponto em que não podemos pensar ou agir diferente. Quanto às demais coisas e interpretações doutrinárias, podemos variar, sabendo, porém, que segundo a maneira com que interpretamos, nos comportamos no mundo e diante das pessoas.

Com base nisso, a pergunta que fizeram a vc não é uma questão fundamental para a vida Cristã. Apenas se trata de uma pergunta de cunho de curiosidade e, portanto, nem mesmo a Palavra de Deus lhe dá muita importância.Quanto a isso, quero destacar dois textos bíblicos que justificam o que digo:

Deuteronômio 29.29: “As coisas encobertas são para o SENHOR, nosso Deus; porém as reveladas são para nós e para nossos filhos, para sempre, para cumprirmos todas as palavras desta lei”. O Senhor, na Bíblia, não nos revela exatamente o que será da Terra, após a vinda de Jesus. E esse versículo nos chama a atenção para que a gente cuide de não buscar saber aquilo que Deus não revelou. Na história da Igreja, muitos erros foram cometidos, exatamente, porque homens e mulheres, até mesmo, com a melhor das intenções buscaram saber e dizer das coisas do alto, baseados em conjecturas e sabedoria humana. O resultado disso foram muitos desvios, culminando em vãs doutrinas. A disciplina da Escatologia Bíblica (que trata dos assuntos do fim), a partir de estudos sérios, aqueles que fazem conjecturas das Escrituras, mas buscam apenas afirmar o que elas permitem e dão a conhecer, não enveredam pelo caminho dessa pergunta que fizeram a vc, ou seja, sobre o que será do Planeta Terra, após a vinda de Jesus (As Testeminhas de Jeová têm trazido muita confusão sobre esse assunto em suas doutrinas. Na verdade, o que estão fazendo é desobedecer o que diz Deuteronômio 29.29). Portanto, o melhor a fazer é seguir esse conselho bíblico. Mesmo as coisas reveladas só tem o objetivo de obedecermos ao que Deus nos manda fazer para a nossa santificação, salvação.... Assim, entendo que Deus não revelou nada sobre o que será do Planeta Terra, exatamente porque isso não contribui em nada para a nossa salvação ou para a nossa santificação.

Apocalipse 21:1: “Então vi um novo céu e uma nova terra, pois já o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe.” Versículo simples e claro. Deus não se importa em falar do que será do Planeta Terra, mas do lugar que ele está preparando para os salvos, sem muitos detalhes. O apóstolo Paulo fez questão de salientar a esse respeito que “Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam.” (1 Coríntios 2:9). Assim, mesmo em relação àquilo que será da vida com Deus, o Pai não entra em detalhes conosco, só nos faz saber que será muito melhor do que podemos imaginar.Penso que a melhor resposta que vc poderia dar é compartilhar a fé do Evangelho e viver em santidade para testemunhar a salvação e a vida em Cristo.

Um abraço,


Pr. Otávio Júlio Torres
Igreja Metodista

terça-feira, 27 de julho de 2010

Pregação na IM Santo Amaro - Integridade

INTEGRIDADE - Rev.Otávio Júlio Torres from Odair Carrer on Vimeo.

Sermão: A novidade de Deus na vida de uma família

Título: A novidade de Deus na vida de uma família
Texto bíblico: Lucas 15.15-20
Categoria: sermão temático

Otávio Júlio Torres


Introdução
Ao olhamos para a vida das famílias brasileiras, percebemos que elas vivem tempos de muitas mudanças e variadas experiências. A base da família hoje é composta de pai, mãe e filhos/as. É a chamada família nuclear. Durante muito tempo esse modelo de família foi considerado o ideal, o padrão por excelência. Muitosainda dizem ser este o padrão bíblico, divino, para a família. No entanto, notaremos no sermão de hoje que, independente da constituição familiar à qualpertencemos, siga ela ou não o padrão de família nuclear, Deus deseja fazer-se presente e, ainda mais, pretende promover uma novidade no seu seio. Não importase a família que você pertence esteja ou não em conformidade com aquilo quemuitos têm transmitido como o modelo ideal.


Os modelos de família no contexto bíblico
Mesmo quando abrimos nossas Bíblias, é importante notar a variedade de modelos de família. No Antigo Testamento impera o modelo patriarcal, em que o homem pode ter diversas mulheres. Podemos citar o exemplo da família de Samuel. Seu pai tinha duas mulheres, Ana, mãe de Samuel, e Penina (1 Samuel 1). Outro exemplo bastante expressivo é o do rei Salomão. 1 Reis 11.1 narra que Salomão amou muitas mulheres e o versículo deste mesmo capítulo especifica que ele teve setecentas mulheres, princesas, e trezentas concubinas. Davi, seu pai, homem que agradou o coração de Deus e ficou conhecido como o maior de todos os reis de Israel, também desposou várias mulheres.

Com o passar dos séculos, a maioria das sociedades perceberam que esse modelo de família não era muito bom, pois as muitas desigualdades entre seus membros trazia grandes problemas. 1 Samuel 1 relata alguns desses problemas: Eucana era um marido dividido. Amava a Ana, mas recompensava a Penina, que lhe dava filhos (socialmente, os filhos, sobretudo do sexo masculino, garantiam a posteridade do nome do pai e da sua herança). Ana, por sua vez, se sentia inferior a Penina, por não poder dar filhos a Eucana. Já Penina, aproveitava a sua situação de ser mãe de filhos e, portanto, de ser socialmente mais importante,e oprimia a Ana. Por outro lado, o texto relata que Eucana amava só a Ana. Que tragédia de família!

Por isso, mesmo que a carta de 1 Timóteo 3.12 admoesta aos diáconos para que sejam maridos de uma só mulher. Entendo ter sido esse um dos grandes avanços da sociedade mundial no que diz respeito à instituição familiar.

Proposição
A família abençoada por Deus é só aquela composta por pai, mãe e filhos/as? Ou o amor de Deus está acima deste modelo socialmente aceito e apregoado como único padrão bíblico para instituição familiar?

O exemplo da parábola que Jesus conta
No tempo de Jesus, as famílias também sofriam mudanças. Ao contar a parábola do filho pródigo, em que Jesus quer destacar a novidade da graça e da salvação do reino de Deus na vida de uma pessoa, porque não dizer de uma família, ele faz uso de um modelo que havia no seu tempo. E, por sinal, muito comum hoje também: A família que Jesus usa na parábola é composta do pai e de dois filhos.

Diante deste texto, a pergunta que me inquieta é a seguinte: Por que Jesus, ao contar a parábola, oculta a presença da mãe? Será porque o objetivo que pretendia era exclusivamente narrar o amor de Deus por todas as pessoas, indistintamente de seus erros e pecados? Será porque, no sentido da história, o papel da mãe e da mulher não era necessário? Bem, o texto não menciona. Portanto, não passaria de conjectura qualquer conclusão que chegássemos a esse respeito. Por isso mesmo, o que nos importa, por hora, é destacar que Jesus faz uso de uma constituição familiar comum à sociedade do seu tempo. Considerando a religião, a cultura e organização social judaica do primeiro século, podemos concluir que a falta da mãe na parábola podia-se justificar por dois acontecimentos distintos: tratava-se de um homem viúvo ou divorciado. Neste último caso, naquele tempo, os filhos pertenciam juridicamente ao pai.

A primeira grande novidade que desperta a minha atenção nesse texto é que Jesus não tem preconceitos e não reprova, do ponto de vista religioso ou divino, um modelo de família “incompleto”, para falar dos intentos divinos. E isso está de acordo com a conclusão central da parábola: destacar que o amor e a graça divina acolhem a todos que desejam retornar a ele, independentemente de sua condição pessoal ou familiar.

É importante que eu seja bem compreendido no que estou pretendendo dizer. O fato de Jesus não usar, na parábola, o exemplo de uma família com pai, mãe e filhos, não significa que ele reconheça e aprove qualquer constituição familiar. Certamente, principalmente no contexto da sociedade atual, é um desejo e um ideal da maioria das pessoas constituir uma família composta de todos os seus membros, pai, mãe, filhos/as. Todavia, é preciso que se desmistifique a afirmação de que Deus somente abençoa ou se agrada da família que obedece a esse padrão, como muitos têm dito por aí. Certamente foi sintomático aos ouvintes da parábola notar a falta da presença da mulher, da mãe na história daquela família. Inclusive, do ponto de vista religioso daquela época, a explicação mais provável para esse caso já foi citado: ou o homem é viúvo ou divorciado (era permitido ao homem judeu, por lei mosaica, repudiar sua mulher).

Por isso, digo ser uma novidade a atitude de Jesus. E o mais incrível é que, no desfecho da parábola, Jesus dá a entender que a falta da mãe não impediu a felicidade da família, ainda que o filho mais velho não tenha visto com bons olhos a atitude do pai com o filho mais novo. No entanto, ao que parece, o final da história dessa família tem tudo para dar certo. O pai demonstrou seu amor e tem ambos os filhos em sua casa. O filho mais moço amadureceu com as experiências negativas que viveu no mundo e percebeu que ninguém o ama mais do que seu pai e o filho mais velho aprendeu que dentro de casa não é apenas um administrador e zelador dos bens da família, mas recebeu de seu pai a declaração de que tudo ali também lhe pertencia. A benção foi completa na vida daquela família.


Considerações finais
É precisovoltar à proposição deste sermão: Afinal, só está debaixo da bênção de Deus aspessoas, cujas famílias seguem o modelo nuclear?

Como vimos no texto bíblico apresentado, ao falar da bênção de Deus, Jesus não se ateve em usar o modelo da família nuclear. Isso nos leva a concluir que Deus não se limita em abençoar somente as famílias compostas por pai, mãe e filhos/as. No texto, o mais importante, é o AMOR. E, por amor, Deus, em Cristo venceu o pecado humano, para nos conceder a salvação gratuita. Se podemos falar em padrão bíblico, apenas o amor é colocado como o cumprimento de toda a lei, como disse Jesus. Jesus também afirmou: “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a praticam.”

Uma advertência: Aqui não estou me posicionando contra a família nuclear. Não! Inclusive, pertenço a uma família nuclear. Tenho esposa e duas filhas. E é uma bênção. É muito bom saber que posso compartilhar minha vida com minha esposa e minhas filhas. No entanto, o amor de Deus é maior que o pecado que levou pessoas a se separarem. Deus as ama. Deus quer abençoá-las e fazer delas pessoas salvas e remidas em Cristo Jesus.

Com este sermão, quero afirmar que o amor e a bênção de Deus estão sobre todas as pessoas que, pela fé, o aceitam. Reconstruir suas vidas familiares ou viver sob outros modelos, que não sejam de relações homesexuais (que transgridem a natureza de gênero e, portanto, frustram a criação divina), não afasta a bênção de Deus e o próprio Deus de perto das pessoas.

Dessa forma, não precisamos nos espantar ao encontrar no seio de nossas Igrejas famílias constituídas por avôs e seus netos e netas, mães sozinhas com seus filhos, famílias adotivas (com crianças que não foram geradas biologicamente pelo casal), casais sem filhos, etc. Podemos ver nesses casos não uma distorção da realidade familiar, mas novas formas de ser e estar juntos. Gosto muito de uma frase, dita por uma criança e recontada por Déa Kerr Afini, que diz: “Lar é uma porção de gentes que se amam”. Essa, sim, é a verdadeira constituição familiar, segundo o ensino do Mestre, no qual os laços de amor são a real fonte e fundamento da vida.

Deus seja louvado!

sexta-feira, 23 de julho de 2010

A respeito da forma do batismo cristão

Otávio Júlio Torres

O batismo cristão é um sinal da regeneração ou novo nascimento. Não deve ser entendido como ato de remissão de pecados. Na verdade, todos os textos bíblicos do NT narram que ele é aplicado na seqüência, exatamente como sinal da regeneração, do novo nascimento, e não como condição para isso. Portanto, é um momento posterior ao arrependimento. Os Cânones da Igreja Metodista assim definem o batismo: “O batismo é o sinal visível da graça invisível de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual nos tornamos participante da comunhão do Espírito Santo e herdeiros da vida eterna” (Cânones da Igreja Metodista, 2002, p.61).

Neste texto, o nosso objetivo é apresentar aos cristãos que praticam a aspersão, como forma de batismo, e que são questionados sobre a sua validade, argumentos bíblicos que corroboram em favor desta prática. Mas, não é do interesse deste texto refutar a prática batismal por imersão ou derramamento. O nosso entendimento é de que não é a forma que determina a validade do sacramento, mas a conversão pessoal que conduz ao Novo Nascimento em Cristo Jesus.

1. O termo imersão não aparece nos relatos bíblicos. Por outro lado, quando se trata de ritual de purificação, no Antigo Testamento, o termo aspersão (ou aspergir) aparece sempre. A Bíblia dos primeiros cristãos era as Escrituras, termo usado no Novo Testamento para referir-se ao Antigo Testamento. Por mais ou menos 1500 anos o batismo tinha sido administrado por aspersão e derramamento (ou efusão). O modo dos judeus se purificarem era por derramamento e aspersão, bem como o recebimento do Espírito de Deus (Números 8:5-7; Isaias 44.3-4; Ezequiel 36:25-27; Joel 2:28-29). São expressões tão comuns na Bíblia que, ao consultar uma concordância, derramamento e aspersão aparecem mais de 200 vezes. Os judeus aspergiam as pessoas e o livro com água (Hb 9.19-20 — é um texto do NT, usando o AT como exemplo de purificação ou remissão, v.22). Sobre a prática judaica da purificação, lemos ainda na passagem do casamento em Caná da Galiléia que “haviam ali seis talhas de pedra, que os judeus usavam nas purificações” (João 2.6). Nessas cerimônias as águas tinham de ser puras e, portanto de rios de águas correntes. Águas de piscinas, cisternas ou lagos não eram usadas, até por uma questão de higiene.

2. No Novo Testamento, o batismo está em referência ao recebimento do Espírito Santo, que desce sobre a pessoa. Didática e ritualmente falando, lembra a aspersão e não a imersão. Ainda há vários textos em Atos que colocam o ato do batismo no ambiente da casa (Atos 9.17-18; 10.22,47-48), em horário inapropriado para a imersão (Atos 16.25,33), em lugar público deJerusalém, onde só havia cisterna (Atos 2.37-39). Paulo, por exemplo, foi batizado em casa e de pé, segundo a narrativa de Atos 9.17-18).

3. O caso João Batista. Em Atos 11.15-16, lemos: “... caiu o Espírito Santo sobre eles... Então, me lembrei da palavra do Senhor, quando disse: João batizou com água, mas vós sereis batizados com o Espírito Santo.” O Espírito descia sobre as pessoas. Daí, fica a pergunta: Porque Pedro comparou o batismo com o Espírito Santo com o batismo de João? Provavelmente porque João batizava com água da mesma forma que o Espírito Santo descia sobre as pessoas, ou seja, aspergindo água sobre a cabeça das pessoas. Tanto no NT, como no AT, a manifestação do Espírito de Deus ocorre como aspersão; Ele desce sobre as pessoas e não emerge as pessoas nEle. Assim, é difícil interpretar a expressão “com água” por imersão, uma vez que a expressão “com o Espírito Santo” lembra a aspersão (leia Atos0 1.5; Isaias 32.15). Isto faz referência à mentalidade do povo. Se Israel não conhecia, como ritual, a prática da imersão, como se explica a mudança de mentalidade? Que textos bíblicos propõem isso? Ademais, é um erro, como propõem os defensores da imersão, traduzir o termo grego baptizo por imergir. Na verdade, se o fosse assim, em nossas Bíblias esse termo grego não era apenas transliterado para o português, à semelhança de sua pronuncia em grego, por batizar, mas deveria aparecer a palavra traduzida imergir. A confusão provém de seu uso na cultura Greco-romana, em que baptizo refere-se aos banhos públicos de purificação que essas culturas realizavam a seus deuses. Neste aspecto, é mais prudente ficar com a tradição judaica da aspersão. Nesta direção, há uma citação do Wikipédia, que vale a pena ressaltar: “A questão é que, se João Batista estivesse fazendo algo novo naquele contexto, os levitas e sacerdotes teriam justificativa para contestar o que estava sendo praticado. Pelo contrário, João Batista, era da linhagem sacerdotal (filho do sacerdote Zacarias) e a sua prática no rito de purificação não se chocava com a Lei e nem com os Profetas. Quando os discípulos de Jesus discutiram com os discípulos de João Batista sobre a "purificação", eles estavam se referindo ao batismo (João 3:25-26). Aliás, estes versos fazem a associação direta do verbo batizar com as purificações do Antigo Testamento presentes na Lei, nos Salmos e nos Profetas, tanto como ato de consagração como de purificação em si” (fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Aspersão)

4. Ainda há um elemento histórico a ser considerado. A pergunta que se faz é a seguinte: Quando aparece na História da Igreja a primeira referência a batismo por imersão? Certamente, surge com os movimentos dos anabatistas, bem posterior à prática da Igreja Primitiva e cristã.

Conclusão:

O Novo Testamento, ao nos conduzir a Cristo (Gálatas 3:24), nos aponta para o batismo por aspersão. Contudo, entendo que não é a quantidade de água ou a formalidade do ato, mas o que o batismo representa para o batizando e para a comunidade em que se insere. O autor do livro aos Hebreus, afirma: “aproximemo-nos, com sincero coração, em plena certeza de fé, tendo sido aspergidos os corações de má consciência e lavado o corpo com água pura”, fato que deveria ocorrer no batismo. Aqui encontramos tanto o aspergir como o lavar. Assim, a essência não está no modo de aplicação do batismo, mas na fé e na manutenção de um coração purificado, nascido de novo em Cristo Jesus, diante de Deus.


Para pensar:

1. Se a imersão fosse o único modo de batismo aceito por Deus, muitas pessoas nas regiões geladas do norte e nos lugares desertos como o Saara, onde não se poderia obter água suficiente, não poderiam ser batizadas. Também pessoas doentes e hospitalizadas, ao se converterem, estariam impedidas de serem batizadas. Portanto, Deus teria ordenado uma impossibilidade?”

2. Muitas pessoas no tempo de Paulo e dos apóstolos davam mais importância a ordenanças exteriores, como a circuncisão, as lavagens (purificações), batismos, etc., do que à obra do Espírito Santo. Por isso, Paulo afirmava: “Graças a Deus que não batizei a nenhum de vós, senão a Crispo e Gaio” (1Co 1.14) e “Cristo não me enviou a batizar mas a pregar o evangelho” (1Co 1.17). O batismo era um assunto tão tranqüilo para Cristo e os primeiros Cristãos que não há sequer um sermão sobre o assunto no Novo Testamento. Pergunta: se o batismo cristão é por imersão e a prática do rebatismo é bíblica, onde lemos que os discípulos foram rebatizados ou imergidos em água. Quem lhes deu o batismo cristão (entendendo este por imersão)? Se o batismo por imersão é o batismo bíblico para os cristãos e para Deus, não seria de fundamental importância, as Escrituras do Novo Testamento narrarem o exemplo dado pelos apóstolos em seu batismo? Afinal de contas, eles eram da religião do judaísmo e assim, só conheciam o batismo pela aspersão.

A intencionalidade

Otávio Júlio Torres

A noção de intencionalidade, para Merleau-Ponty, só é compreensível no desenvolvimento da redução fenomenológica. A intencionalidade em Husserl é estabelecida a partir da noção de consciência, que é o resultado ou a somatória das vivências ou atos intencionais. Todavia, Husserl nega categoricamente a noção de uma consciência representativa. A consciência está voltada para fora, para o objeto e, no entanto, transcende-se e permanece inadequada ao seu objeto. Mas ela também está voltada para o resultado do seu ato, para o sentido da essência intuída. Em vista disto, Husserl distingue a intencionalidade do ato, correspondente aos juízos e tomadas de posição do ser humano, e a intencionalidade operante:

...aquela que forma a unidade natural e antepredicativa do mundo e de nossa vida, que aparece em nossos desejos, nossas avaliações, nossa paisagem, mais claramente do que no conhecimento objetivo, e fornece o texto do qual nossos conhecimentos procuram ser a tradução em linguagem exata[2].

Nessa direção, a intencionalidade deixou de ser propriedade de uma consciência, de um indivíduo, para ser uma maneira única de existir das coisas, do mundo. Como já foi dito anteriormente, a consciência deixou de abarcar ou possuir o mundo, para tornar-se parte do projeto dele, enquanto se move em direção a ele, na tentativa de exprimi-lo.

Para Merleau-Ponty, é na relação intencional com o mundo que o sujeito encontra-se inserido no sentido histórico: "Porque estamos no mundo, estamos condenados ao sentido, e não podemos fazer nada nem dizer nada que não adquira um nome na história"[3]. Portanto, a intencionalidade é que torna possível o surgimento do sentido humano, na relação estabelecida com o mundo e os outros.

Mediante a redução, chega-se à concepção da intencionalidade que traz à consciência a existência de algo. Existência que não se perde no acaso ou apenas é adquirida por acidente, mas é sempre vivida em relação, em coexistência. A intencionalidade aponta para um mundo múltiplo de essências e, ao revelá-las, leva à distinção de diversas categorias, conforme suas próprias estruturas, de acordo com seus próprios sentidos.

Finalmente, ao retomar esses fundamentos, Merleau-Ponty conclui que o mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras; ele é, portanto, inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha.4.

Assim sendo, a tarefa da fenomenologia, para Merleau-Ponty, é propor uma abertura ao mundo vivido, antes de sua significação. Retornar ao mundo da vida, ao solo dos encontros interpessoais, do sentido da história humana. É repor as essências na existência. É possibilitar ao ser humano descobrir-se em sua facticidade, em seu corpo próprio, que relaciona-se consigo mesmo, com o mundo e com o outro.


[1] Maurice Merleau-Ponty. Fenomenologia da percepção, p.15

[2] Ibidem, p.16

[3] Ibidem, p.18

[4] Ibidem, p.18

As bases fenomenológicas da filosofia de Merleau-Ponty

Otávio Júlio Torres

O tempo atual é marcado por muitas questões relativas ao corpo. Descobre-se o genoma humano, decifra-se o DNA, órgãos são reproduzidos em laboratório, as ciências médicas avançam na superação das doenças, a cosmética cresce em abrangência, em busca do corpo perfeito. O corpo aparece coisificado, um objeto para um fim alheio a ele, e até mesmo um obstáculo a ser vencido em si mesmo.

Em meio a tantas distorções e usos do corpo, a Fenomenologia de Merleau-Ponty vem sendo vista como uma nova possibilidade, um novo olhar, não só para a Filosofia, como para as ciências em geral.

Assim, o propósito desta monografia é apresentar o corpo na fenomenologia merleau-pontyana. Um corpo que se apresenta como fonte originária de todas as experiências humanas obtidas do contato com o mundo. Merleau-Ponty desenvolve tal fenomenologia, em especial, em sua tese Fenomenologia da Percepção, em 1945, tratado com o qual ele obteve o grau de Doutor em Filosofia.

Sua trajetória sempre esteve ligada a profundos estudos de Filosofia. Nascido em 1908, foi aluno da École Normale Supérieure de 1926-1930, quando conheceu aqueles que, com ele, formariam a “geração existencialista” dos anos 40 e 50. Desenvolveu grande amizade com Sartre e Simone de Beauvoir, amizade que sofreu uma crise quando Merleau-Ponty criticou Sartre na obra As aventuras da Dialética.

Sua obra Signes (Sinais) marca a passagem do filósofo de uma perspectiva fenomenológica para uma investigação ontológica.

Suas primeiras obras estavam nitidamente vinculadas à fenomenologia Husserliana, embora procurasse a cada passo minimizar o papel constituinte da consciência e outorgar à relação corpo sensível — mundo sensível o poder doador de significados que Husserl atribuía ao Sujeito Transcendental. A partir de Signes, Merleau-Ponty encaminha-se para a ontologia como região pré-reflexiva, selvagem e bruta, de onde emergem as categorias reflexivas. A filosofia — reflexão — deve voltar às origens da própria reflexão e descobrir seu solo anterior à atividade reflexiva e responsável por ela. Essa região é o “logos do mundo estético”.[1]

Merleau-Ponty é um crítico profundo do humanismo, por causa da dicotomia sujeito-objeto que constitui, para ele, subjetivismo filosófico e objetivismo científico. Decorrente dessa dicotomia, as coisas se tornam representações constituídas pelo sujeito. O mundo passa a ser o conceito, ou a idéia do mundo. Realidades se tornam cada vez menos reais.

Merleau-Ponty, diante disso, busca o questionamento entre filosofia e ciência, enseja o questionamento de seus conceitos fundamentais, propõe um novo ponto de partida: a compreensão das origens da filosofia e da ciência. Ele promove, assim, em seus escritos, a “noção de uma consciência perceptiva solidária com o corpo, enquanto corpo próprio ou vivido, maneira pela qual nos instalamos no mundo, ganhando e doando significação”[2].

Para apresentar o pensamento de Merleau-Ponty a respeito do corpo, em sua fenomenologia, a presente monografia está dividida em três partes. O primeiro capítulo aborda as bases fenomenológicas de Merleau-Ponty. Inicialmente, estabelece-se o conceito de fenomenologia, desde suas origens semânticas, percorrendo o pensamento kantiano e Husserliano. É a partir de Husserl que Merleau-Ponty desenvolve sua fenomenologia, sendo que, no seu desenvolvimento, termina por tomar rumos próprios de reflexão.

No segundo capítulo, são tratados dois aspectos principais: a abordagem fenomenológica do corpo, por parte de Merleau-Ponty, e as implicações filosóficas decorrentes de tal abordagem. É estabelecida uma comparação entre a Fisiologia Mecanicista e a proposta de Merleau-Ponty, bem como a questão da percepção, consciência e representação. Por fim, são vistos os aspectos decorrentes da colocação do corpo como fonte originária do ser no mundo.

No terceiro e último capítulo, são apresentadas, em linhas gerais, as contribuições da filosofia merleau-pontyana para as ciências humanas. A partir do prisma da fenomenologia do corpo, as ciências humanas vêm se esforçando para dar ao corpo um tratamento diferenciado daquele que dantes davam. Será possível perceber uma mudança na forma como essas ciências concebem o corpo, frente à descoberta fenomenológica do mesmo.

Assim, o corpo, a partir de Merleau-Ponty, deixa de ser encarado como mero objeto, passando a ser um paradigma para as novas reflexões. As ciências dialogam com a Fenomenologia e, desse diálogo, surge uma revisão de conceitos e posturas, considerando a intencionalidade operante do corpo.




[1] Maurice Merleau-Ponty. Textos selecionados (seleção de textos de Marilena de Souza Chauí). 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984 (Os Pensadores), p.VIII

[2] Ibidem, p.XI

O que é Fenomenologia?

Otávio Júlio Torres

Tratar a Fenomenologia como filosofia é uma tarefa que excede à simples compreensão do termo em caráter terminológico.

Em uma análise etimológica, a palavra Fenomenologia é o estudo ou a ciência do fenômeno, de tudo aquilo que aparece. Sua raiz vem do grego phainomenon, o que aparece e brilha. A partir dessa origem, faz Fenomenologia qualquer pessoa que descreva a maneira de uma coisa aparecer. No entanto, a história do termo mostra-se bem mais esclarecedora do que sua mera análise etimológica.

O termo Fenomenologia já aparece nas filosofias de Kant e Hegel. Kant utiliza-se dessa palavra em 1770, numa carta a J. H. Lambert, para designar a disciplina propedêutica que deve preceder a metafísica. Mais adiante, em 1772, reutiliza o termo na carta que escreve a Marcus Herz, para esboçar o plano da obra que, após um longo período, aparecerá em 1781, sob o título de Crítica da Razão Pura. Segundo a carta de Kant a Herz, a primeira seção da referida obra deveria intitular-se A Fenomenologia Geral, embora Kant a tenha chamado de Estética Transcendental. Todavia, uma fenomenologia não está ausente na crítica kantiana.

Ao fazer uma investigação da estrutura do sujeito e das funções do Espírito, Kant se dá por tarefa descrever o domínio do aparecer ou o fenômeno, com objetivo de limitar as pretensões do conhecimento que, por atingir apenas o fenômeno, não pode jamais almejar se tornar conhecimento do ser ou do absoluto.

Todavia, é em Hegel, na Fenomenologia do Espírito (1807), que o termo entra definitivamente na tradição filosófica. A fenomenologia de Hegel difere da de Kant no que diz respeito à concepção das relações entre o fenômeno e o ser ou o absoluto. Segundo Hegel, a fenomenologia é uma filosofia do absoluto, do Espírito, ao permitir uma retomada do caminho que o Espírito percorre no desenrolar da História. A fenomenologia, pois, para Hegel, não tem por escopo construir uma filosofia na qual a verdade do absoluto se enuncia fora ou à parte da experiência humana, mas mostrar como o absoluto está presente em cada momento dessa experiência.

Até aqui, fica evidente que a fenomenologia trata-se apenas de uma propedêutica à ontologia; sua tarefa é revelar todo o material que o filósofo terá de pensar, para esclarecer sua ordem oculta e dizer sua significação. Por isso, não seria a fenomenologia kantiana nem a hegeliana que se perpetuariam no século XX, sob a forma da filosofia que traz o nome de Fenomenologia. É Edmund Husserl (1859-1938) o verdadeiro iniciador desse movimento. Husserl deu conteúdo novo a uma palavra já antiga[1]. É baseado, portanto, em Husserl, que Merleau-Ponty desenvolverá sua filosofia.

1.2. A fenomenologia como filosofia

A Fenomenologia, como filosofia, estuda as essências, incluindo todos os problemas que as definem. Pretende repor o estudo das essências na existência. Assim, as essências devem ser compreendidas a partir de suas próprias facticidades[2]. Nessa direção, Husserl define a Fenomenologia como uma filosofia transcendental, na medida em que coloca em suspenso todas as afirmações da atitude natural e das ciências particulares.

É uma filosofia para qual o mundo é uma presença que já está sempre aí, antes mesmo da reflexão. Todo o esforço fenomenológico, portanto, consiste em reencontrar esse contato ingênuo com o mundo, para, somente depois, construí-lo filosoficamente. Por isso, é uma filosofia que pretende ser uma ciência exata, um relato do espaço, do tempo, do mundo vividos, por exemplo. É a tentativa de uma descrição direta da experiência humana, na sua relação com o mundo, tal como ela é, sem nenhuma consideração à sua origem psicológica ou a explicações causais que as ciências possam fornecer. Ou seja, trata-se de descrever, não de analisar ou explicar. É uma filosofia que pretende voltar "às coisas mesmas".

Retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente, como a geografia em relação à paisagem – primeiramente nós aprendemos o que é uma floresta, um prado ou um riacho.[3]

Trata-se, diz Merleau-Ponty, de uma descrição pura, que exclui a reflexão e a explicação científica.

“O real deve ser descrito, não construído ou constituído.” Isso quer dizer que não posso assimilar a percepção com as sínteses que são da ordem do juízo, dos atos e da predicação.[4]

É uma negação de quaisquer sínteses ou resultados propostos pelas ciências. O mundo ou o real, deixa de ser um objeto constituído, um resultado científico, para ser a base, o meio natural e o campo de todos os pensamentos e percepções humanas.

Para Merleau-Ponty, retornar às coisas mesmas não se identifica, portanto, com o objeto da ciência, nem se alcança pelo esforço da consciência interior humana. Mas é a volta ao mundo anterior à reflexão, ao irrefletido, ao mundo vivido, sobre o qual a ciência se constrói.

Assim, Merleau-Ponty parte do Lebenswelt husserliano para construir sua filosofia. Reconhece que o "retorno ao mundo da vida" é a contribuição mais importante de Husserl para a sua filosofia.



[1] André Dartigues. O que é fenomenologia, p.1-3

[2] Por facticidade, Merleau-Ponty quer expressar a presença fenomenal, experimental da coisa percebida. É a facticidade que permite a vivência experimental da essência das coisas.

[3] Maurice Merleau-Ponty. Fenomenologia da percepção, p.4

[4] Ibidem, p.5

A redução fenomenológica

Otávio Júlio Torres

A redução fenomenológica constitui o método que permitirá o retorno às coisas mesmas. Por isso, seu objetivo primeiro é mostrar a necessidade de buscar um ponto de partida, um fundamento absoluto, radical, que permita o aparecimento da relação humana com o mundo, tal como ela acontece. Husserl identifica no Cogito esse ponto de partida.

Para Merleau-Ponty, a redução fenomenológica tem como finalidade apontar para uma filosofia existencial. Nesse sentido, ela é uma espécie de fórmula ou caminho que torna possível ao Cogito reconhecer que sua reflexão está fundamentada no mundo da vida, no irrefletido, no mundo que está aí, anterior à ciência (que é decorrente dele). Nesse contexto, a redução não pretende retirar o Cogito do mundo para uma consciência pura e não pode ser considerada como um empreendimento idealista, que busca uma volta reflexiva ao ser interior humano.

Na redução, a consciência não é mais primeira, não abarca o mundo e nem o possui, mas reconhece o mundo e coloca-se em direção a ele incessantemente[1]. A redução fenomenológica, portanto, é a única forma de reflexão que não anula o irrefletido, mas o manifesta.

Em última análise, Merleau-Ponty viu na redução a possibilidade do reencontro com o mundo tal como ele é:

O mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável.[2]

Os passos metodológicos[3] próprios da redução fenomenológica podem ser sintetizados em três momentos subseqüentes:

1)Suspender o movimento ser no mundo. Ou seja, recusar a cumplicidade, a relação do ser (indivíduo, pessoa) com o mundo, renunciar, abster-se das certezas do senso comum e da atitude natural. Nesse primeiro passo, o objetivo a ser alcançado é reencontrar a experiência irrefletida do mundo; a colocação do mundo entre parênteses significa o desvelamento e o surgimento do mundo enquanto tal.

2)Entrar numa atitude de "admiração" do mundo. É relacionar-se com o mundo, possibilitando que os atos intencionais do indivíduo com o mundo apareçam. É exatamente a partir da relação do indivíduo com o mundo, do ser no mundo, que é possível conceber o mundo como transcendência própria e o próprio sujeito como transcendência em relação ao mundo. Para Husserl, esse é o motor da redução[4].

3) Recolocar nessa experiência a reflexão, como atitude de verificação e possibilidade pertencente ao próprio ser humano. Aqui, trata-se de uma reflexão radical que supera o solipcismo[5] e a construção do objeto por parte do sujeito, defendidos pelo intelectualismo[6]. A verificação reflexiva resulta no reconhecimento da preexistência do mundo como afirmação radical do método fenomenológico.

No prefácio da obra Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty defende a redução diante da compreensão idealista, defendida por intérpretes de Husserl e "dissidentes" existenciais. Segundo Merleau-Ponty, diziam eles:

A redução fenomenológica seria idealista, no sentido de um idealismo transcendental que trata o mundo como uma unidade de valor indiviso[7].

Segundo essa concepção, a redução fenomenológica seria o retorno a uma consciência transcendental, perante a qual o mundo se apresenta em uma transparência absoluta, como o entende, por exemplo, Kant[8]. Tal transparência significa que o mundo não é distinto da significação mundo. Ou seja, a percepção do mundo não é própria do indivíduo, mas provém de consciências pré-pessoais, sendo que este mundo é, por definição, único, um sistema das verdades, consciências ou sentidos que torna possível a "apreensão de uma certa hilè como significando um fenômeno de grau superior"[9].

O idealismo consiste exatamente no fato de que o mundo é dado em uma significação prévia, dentro da qual o indivíduo apenas o apreende. Nesse caso, desaparece o que Merleau-Ponty chama de "opacidade" e "transcendência" do mundo. Isso deve-se ao fato de o Cogito desvalorizar a percepção de um outro, de um "espectador estrangeiro" que o impede de ser absolutamente si mesmo e o expõe ao olhar de outros, ou pelo menos lhe faz perceber uma consciência entre as consciências.

Para Merleau-Ponty, é esse problema do outro que salva a redução fenomenológica husserliana do idealismo a que seus sucessores a relegaram:

Todo o mal-entendido de Husserl com seus intérpretes, com os 'dissidentes' existenciais e, finalmente, consigo mesmo provém do fato de que, justamente para ver o mundo e apreendê-lo como paradoxo, é preciso romper nossa familiaridade com ele, e porque essa ruptura só pode ensinar-nos o brotamento imotivado do mundo.[10]

Para concluir essa seção do prefácio, Merleau-Ponty salienta que o maior ensinamento da redução é a impossibilidade de uma redução completa. A relação inalienável do ser no mundo, que coloca sua própria reflexão no curso temporal que ela procura captar, não permite conceber que exista um pensamento, uma consciência, um sistema de verdades que abarque todo o pensamento humano e o torne capaz de retornar "às coisas mesmas" definitivamente. "Eis por que Husserl sempre volta a se interrogar sobre a possibilidade da redução"[11], afirma.

[1] Ibidem, p.15

[2] Ibidem, p.14

[3] Não se trata, como diz Luiz Ernesto Rodrigues Tápia, de constituir um método de investigação que se dirija pelo uso de padrões estabelecidos pela pesquisa científica. Antes, a Fenomenologia sugere uma atitude ou perspectiva metodológica própria, distinta, estabelecida na relação ser humano-mundo (In: Joel Martins e Maria Fernanda S. Farinha Beirão Dichtchekenian (org.). Temas fundamentais de fenomenologia, p.69-70).

[4] Num primeiro instante, pode parecer que este passo do método da redução fenomenológica leva a desconsiderar o problema da neutralidade científica. Todavia, concluir isto seria uma atitude precipitada. Colocar-se à parte da relação ser no mundo, da situação de que somos do começo ao fim relação ao mundo, significa exatamente adquirir a consciência deste ser no mundo, até então desapercebido, para poder, a partir daí, despertá-lo e fazê-lo aparecer.

[5] O solipcismo considera o Cogito como a única realidade que torna possível a existência do mundo, como resultado de uma capacidade reflexiva do eu pensante.

[6] O intelectualismo defende a predominância dos elementos racionais sobre quaisquer outros sistemas de conhecimento. Na verdade, para o intelectualismo, a razão é o limite de todo o conhecimento.

[7] Maurice Merleau-Ponty. Fenomenologia da percepção, p.7

[8] Para Kant, o mundo é imanente ao sujeito, permitindo-lhe apreendê-lo como ele é, pois o sujeito adquire a significação do mundo a partir das faculdades intelectuais de que dispõe. Para Kant, portanto, cabe ao sujeito racionalizar, significar o mundo para si.

[9] MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção, p.7

[10] Ibidem, p.10

[11] Ibidem, p.10

O Cogito fundamentado no mundo da vida

Otávio Júlio Torres

O método da redução fenomenológica leva Husserl a colocar no Cogito, no sujeito pensante, o ponto de partida da sua filosofia. Deve-se, no entanto, fazer a ressalva de que o Cogito husserliano não se limita à conceituação dada por Descartes.

No sistema cartesiano, o Cogito é a origem e o critério para toda a verdade e, portanto, é o fundamento de todo o conhecimento. Ao enfatizar um eu racional, um eu que se apreende como uma razão, Descartes estabelece um critério de certeza que se assenta numa intuição originária que é a apreensão de um mim mesmo, de um mim por mim. Esta primeira apreensão leva a postular as regras inerentes ao pensar que, por sua vez, explicitam a racionalidade própria do pensar, que se processa matematicamente e se amplia numa cadeia dedutiva de conceitos, apresentados na forma de um conhecimento intuitivo. De acordo com essa concepção, o Cogito pode retirar-se e apreender-se dos significados impressos na realidade, compreendendo-se como unidade de sentido, isolado do mundo, para poder assim, determiná-lo como objeto de conhecimento. Essa concepção resulta em dois princípios básicos do racionalismo cartesiano:

1) o Cogito se apreende como um eu psicológico dado pela consciência imediata, a apreensão de mim por mim e

2) ao se interrogar sobre si mesmo, o Cogito surge como ente racional, que se apreende como ser pensante capaz de instaurar a certeza das coisas pelo arcabouço racional de que é portador. Daí, surge a crença de que ele pode se retirar da realidade e apreender-se como entidade independente[1].

Porém, ao tratar da importância do Cogito, no processo da redução fenomenológica, Husserl fala da mundaneidade em que ele está submerso. O Cogito é concebido como uma coisa entre outras coisas, ainda que de natureza diferente daquela de um mundo físico. Resulta dizer que todo "o conceito implica um determinado compromisso com a realidade, fundado, portanto, num compromisso que ainda não está determinado"[2], que Husserl chama de mundo da vida (Lebenswelt).

O mundo da vida é apresentado por Husserl, no final de sua vida, como o tema primeiro da fenomenologia[3]. É do mundo da vida que procede uma intencionalidade operante e, por meio de um esforço de retomada desse vivido, o sentido se esclarece em diferentes níveis de constituição. O Cogito se funda, portanto, na relação com o mundo da vida, como ser no mundo, adquirindo um pensar reflexivo, num momento posterior àquele em que vive. Um mundo que está aí, um mundo de valores, de crenças, de ações conjuntas, de pensares, que não é apenas próprio do eu pensante, mas é seu suporte, e a partir do qual o Cogito se reconhece.

O mundo da vida, ou o Lebenswelt de Husserl, está vinculado à correlação consciência-mundo, que precede todas as construções científicas ou conceitualizações metafísicas. O mundo da vida expressa-se pelas experiências pré-científicas originárias, construído a partir das formas sensíveis das coisas na experiência cotidiana.

O mundo da vida, experimentado pelo ser humano, significa a somatória das suas experiências vividas dentro de uma realidade rica e complexa, que ele mesmo constrói. Ao mesmo tempo, o mundo da vida também age ativamente na construção do indivíduo, ao constituí-lo no contexto histórico cultural concreto: história, linguagem, cultura, valores...

Em resumo, Husserl identifica o mundo da vida a um a priori dado com a subjetividade transcendental. Integra a polaridade sujeito-objeto por um horizonte pré-dado e sempre aberto a novas experiências. "O Lebenswelt não é uma soma de objetos, mas o mundo do subjetivo do qual emerge toda a atividade humana."[4] A categoria "horizonte" quer expressar a variedade de experiências singulares, encontradas num leque global de sentido, proveniente da intencionalidade subjetiva. Esse horizonte, de que fala Husserl, constitui uma totalidade aberta e viva, que se realiza no retorno ao mundo da vida.



[1] Maria Fernanda Dichtchekenian desenvolve detalhadamente este problema do cogito cartesiano em relação à fenomenologia no artigo: "O cogito e o mundo da vida - proposta de um fundamento rigoroso para o conhecimento". In: Joel Martins e Maria Fernanda S. Farinha Beirão Dichtchekenian (org.). Temas fundamentais de fenomenologia, p.27-34

[2] Ibidem, p.30

[3] Maurice Merleau-Ponty. Fenomenologia da percepção, p.2

[4] Urbano ZILLES. "Os conceitos husserlianos de 'Lebenswelt' e teleologia". In: Fenomenologia hoje: existência, ser e sentido no alvorecer do século XXI, p.513 (Apostila do Seminário Avançado de Fenomenologia no Pensamento Contemporâneo, FENPEC, São Bernardo do Campo, 22-23 de setembro de 2001).