sexta-feira, 23 de julho de 2010

A redução fenomenológica

Otávio Júlio Torres

A redução fenomenológica constitui o método que permitirá o retorno às coisas mesmas. Por isso, seu objetivo primeiro é mostrar a necessidade de buscar um ponto de partida, um fundamento absoluto, radical, que permita o aparecimento da relação humana com o mundo, tal como ela acontece. Husserl identifica no Cogito esse ponto de partida.

Para Merleau-Ponty, a redução fenomenológica tem como finalidade apontar para uma filosofia existencial. Nesse sentido, ela é uma espécie de fórmula ou caminho que torna possível ao Cogito reconhecer que sua reflexão está fundamentada no mundo da vida, no irrefletido, no mundo que está aí, anterior à ciência (que é decorrente dele). Nesse contexto, a redução não pretende retirar o Cogito do mundo para uma consciência pura e não pode ser considerada como um empreendimento idealista, que busca uma volta reflexiva ao ser interior humano.

Na redução, a consciência não é mais primeira, não abarca o mundo e nem o possui, mas reconhece o mundo e coloca-se em direção a ele incessantemente[1]. A redução fenomenológica, portanto, é a única forma de reflexão que não anula o irrefletido, mas o manifesta.

Em última análise, Merleau-Ponty viu na redução a possibilidade do reencontro com o mundo tal como ele é:

O mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável.[2]

Os passos metodológicos[3] próprios da redução fenomenológica podem ser sintetizados em três momentos subseqüentes:

1)Suspender o movimento ser no mundo. Ou seja, recusar a cumplicidade, a relação do ser (indivíduo, pessoa) com o mundo, renunciar, abster-se das certezas do senso comum e da atitude natural. Nesse primeiro passo, o objetivo a ser alcançado é reencontrar a experiência irrefletida do mundo; a colocação do mundo entre parênteses significa o desvelamento e o surgimento do mundo enquanto tal.

2)Entrar numa atitude de "admiração" do mundo. É relacionar-se com o mundo, possibilitando que os atos intencionais do indivíduo com o mundo apareçam. É exatamente a partir da relação do indivíduo com o mundo, do ser no mundo, que é possível conceber o mundo como transcendência própria e o próprio sujeito como transcendência em relação ao mundo. Para Husserl, esse é o motor da redução[4].

3) Recolocar nessa experiência a reflexão, como atitude de verificação e possibilidade pertencente ao próprio ser humano. Aqui, trata-se de uma reflexão radical que supera o solipcismo[5] e a construção do objeto por parte do sujeito, defendidos pelo intelectualismo[6]. A verificação reflexiva resulta no reconhecimento da preexistência do mundo como afirmação radical do método fenomenológico.

No prefácio da obra Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty defende a redução diante da compreensão idealista, defendida por intérpretes de Husserl e "dissidentes" existenciais. Segundo Merleau-Ponty, diziam eles:

A redução fenomenológica seria idealista, no sentido de um idealismo transcendental que trata o mundo como uma unidade de valor indiviso[7].

Segundo essa concepção, a redução fenomenológica seria o retorno a uma consciência transcendental, perante a qual o mundo se apresenta em uma transparência absoluta, como o entende, por exemplo, Kant[8]. Tal transparência significa que o mundo não é distinto da significação mundo. Ou seja, a percepção do mundo não é própria do indivíduo, mas provém de consciências pré-pessoais, sendo que este mundo é, por definição, único, um sistema das verdades, consciências ou sentidos que torna possível a "apreensão de uma certa hilè como significando um fenômeno de grau superior"[9].

O idealismo consiste exatamente no fato de que o mundo é dado em uma significação prévia, dentro da qual o indivíduo apenas o apreende. Nesse caso, desaparece o que Merleau-Ponty chama de "opacidade" e "transcendência" do mundo. Isso deve-se ao fato de o Cogito desvalorizar a percepção de um outro, de um "espectador estrangeiro" que o impede de ser absolutamente si mesmo e o expõe ao olhar de outros, ou pelo menos lhe faz perceber uma consciência entre as consciências.

Para Merleau-Ponty, é esse problema do outro que salva a redução fenomenológica husserliana do idealismo a que seus sucessores a relegaram:

Todo o mal-entendido de Husserl com seus intérpretes, com os 'dissidentes' existenciais e, finalmente, consigo mesmo provém do fato de que, justamente para ver o mundo e apreendê-lo como paradoxo, é preciso romper nossa familiaridade com ele, e porque essa ruptura só pode ensinar-nos o brotamento imotivado do mundo.[10]

Para concluir essa seção do prefácio, Merleau-Ponty salienta que o maior ensinamento da redução é a impossibilidade de uma redução completa. A relação inalienável do ser no mundo, que coloca sua própria reflexão no curso temporal que ela procura captar, não permite conceber que exista um pensamento, uma consciência, um sistema de verdades que abarque todo o pensamento humano e o torne capaz de retornar "às coisas mesmas" definitivamente. "Eis por que Husserl sempre volta a se interrogar sobre a possibilidade da redução"[11], afirma.

[1] Ibidem, p.15

[2] Ibidem, p.14

[3] Não se trata, como diz Luiz Ernesto Rodrigues Tápia, de constituir um método de investigação que se dirija pelo uso de padrões estabelecidos pela pesquisa científica. Antes, a Fenomenologia sugere uma atitude ou perspectiva metodológica própria, distinta, estabelecida na relação ser humano-mundo (In: Joel Martins e Maria Fernanda S. Farinha Beirão Dichtchekenian (org.). Temas fundamentais de fenomenologia, p.69-70).

[4] Num primeiro instante, pode parecer que este passo do método da redução fenomenológica leva a desconsiderar o problema da neutralidade científica. Todavia, concluir isto seria uma atitude precipitada. Colocar-se à parte da relação ser no mundo, da situação de que somos do começo ao fim relação ao mundo, significa exatamente adquirir a consciência deste ser no mundo, até então desapercebido, para poder, a partir daí, despertá-lo e fazê-lo aparecer.

[5] O solipcismo considera o Cogito como a única realidade que torna possível a existência do mundo, como resultado de uma capacidade reflexiva do eu pensante.

[6] O intelectualismo defende a predominância dos elementos racionais sobre quaisquer outros sistemas de conhecimento. Na verdade, para o intelectualismo, a razão é o limite de todo o conhecimento.

[7] Maurice Merleau-Ponty. Fenomenologia da percepção, p.7

[8] Para Kant, o mundo é imanente ao sujeito, permitindo-lhe apreendê-lo como ele é, pois o sujeito adquire a significação do mundo a partir das faculdades intelectuais de que dispõe. Para Kant, portanto, cabe ao sujeito racionalizar, significar o mundo para si.

[9] MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção, p.7

[10] Ibidem, p.10

[11] Ibidem, p.10

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