sexta-feira, 23 de julho de 2010

O Cogito fundamentado no mundo da vida

Otávio Júlio Torres

O método da redução fenomenológica leva Husserl a colocar no Cogito, no sujeito pensante, o ponto de partida da sua filosofia. Deve-se, no entanto, fazer a ressalva de que o Cogito husserliano não se limita à conceituação dada por Descartes.

No sistema cartesiano, o Cogito é a origem e o critério para toda a verdade e, portanto, é o fundamento de todo o conhecimento. Ao enfatizar um eu racional, um eu que se apreende como uma razão, Descartes estabelece um critério de certeza que se assenta numa intuição originária que é a apreensão de um mim mesmo, de um mim por mim. Esta primeira apreensão leva a postular as regras inerentes ao pensar que, por sua vez, explicitam a racionalidade própria do pensar, que se processa matematicamente e se amplia numa cadeia dedutiva de conceitos, apresentados na forma de um conhecimento intuitivo. De acordo com essa concepção, o Cogito pode retirar-se e apreender-se dos significados impressos na realidade, compreendendo-se como unidade de sentido, isolado do mundo, para poder assim, determiná-lo como objeto de conhecimento. Essa concepção resulta em dois princípios básicos do racionalismo cartesiano:

1) o Cogito se apreende como um eu psicológico dado pela consciência imediata, a apreensão de mim por mim e

2) ao se interrogar sobre si mesmo, o Cogito surge como ente racional, que se apreende como ser pensante capaz de instaurar a certeza das coisas pelo arcabouço racional de que é portador. Daí, surge a crença de que ele pode se retirar da realidade e apreender-se como entidade independente[1].

Porém, ao tratar da importância do Cogito, no processo da redução fenomenológica, Husserl fala da mundaneidade em que ele está submerso. O Cogito é concebido como uma coisa entre outras coisas, ainda que de natureza diferente daquela de um mundo físico. Resulta dizer que todo "o conceito implica um determinado compromisso com a realidade, fundado, portanto, num compromisso que ainda não está determinado"[2], que Husserl chama de mundo da vida (Lebenswelt).

O mundo da vida é apresentado por Husserl, no final de sua vida, como o tema primeiro da fenomenologia[3]. É do mundo da vida que procede uma intencionalidade operante e, por meio de um esforço de retomada desse vivido, o sentido se esclarece em diferentes níveis de constituição. O Cogito se funda, portanto, na relação com o mundo da vida, como ser no mundo, adquirindo um pensar reflexivo, num momento posterior àquele em que vive. Um mundo que está aí, um mundo de valores, de crenças, de ações conjuntas, de pensares, que não é apenas próprio do eu pensante, mas é seu suporte, e a partir do qual o Cogito se reconhece.

O mundo da vida, ou o Lebenswelt de Husserl, está vinculado à correlação consciência-mundo, que precede todas as construções científicas ou conceitualizações metafísicas. O mundo da vida expressa-se pelas experiências pré-científicas originárias, construído a partir das formas sensíveis das coisas na experiência cotidiana.

O mundo da vida, experimentado pelo ser humano, significa a somatória das suas experiências vividas dentro de uma realidade rica e complexa, que ele mesmo constrói. Ao mesmo tempo, o mundo da vida também age ativamente na construção do indivíduo, ao constituí-lo no contexto histórico cultural concreto: história, linguagem, cultura, valores...

Em resumo, Husserl identifica o mundo da vida a um a priori dado com a subjetividade transcendental. Integra a polaridade sujeito-objeto por um horizonte pré-dado e sempre aberto a novas experiências. "O Lebenswelt não é uma soma de objetos, mas o mundo do subjetivo do qual emerge toda a atividade humana."[4] A categoria "horizonte" quer expressar a variedade de experiências singulares, encontradas num leque global de sentido, proveniente da intencionalidade subjetiva. Esse horizonte, de que fala Husserl, constitui uma totalidade aberta e viva, que se realiza no retorno ao mundo da vida.



[1] Maria Fernanda Dichtchekenian desenvolve detalhadamente este problema do cogito cartesiano em relação à fenomenologia no artigo: "O cogito e o mundo da vida - proposta de um fundamento rigoroso para o conhecimento". In: Joel Martins e Maria Fernanda S. Farinha Beirão Dichtchekenian (org.). Temas fundamentais de fenomenologia, p.27-34

[2] Ibidem, p.30

[3] Maurice Merleau-Ponty. Fenomenologia da percepção, p.2

[4] Urbano ZILLES. "Os conceitos husserlianos de 'Lebenswelt' e teleologia". In: Fenomenologia hoje: existência, ser e sentido no alvorecer do século XXI, p.513 (Apostila do Seminário Avançado de Fenomenologia no Pensamento Contemporâneo, FENPEC, São Bernardo do Campo, 22-23 de setembro de 2001).

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