quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Família: padrões versus relacionamentos

Otávio Júlio Torres

Dizer que o modelo de família nuclear — pai, mãe e filhos/as — é uma instituição divina é uma afirmação contraditória, embora esta idéia seja muito difundida hoje em dia por lideranças religiosas. Primeiramente, contraditória, porque a Bíblia não apresenta apenas um modelo de constituição familiar. Ao contrário, a experiência bíblica de família testemunha uma variedade marcante de vivências. No contexto do Antigo Testamento, por exemplo, várias são as passagens que referem-se a famílias poligâmicas (em que o homem tem mais cônjuges) e clânicas (ajuntamento de diversos casais e seus respectivos filhos/as consangüíneos, provavelmente até terceira e quarta gerações, e incluía também viúvos/as, órfãos/as, escravos/as, servos/as e estrangeiros/as.

Além dessas variações no aspecto social, os relacionamentos familiares na Bíblia também não eram vitalícios. Embora creiamos que Deus não se alegra com a divisão da família, Jesus mesmo considera a possibilidade do divórcio, da separação e desencontro de um casal (texto). Esse segundo aspecto demonstra com mais ênfase ainda a impossibilidade de a família ser uma instituição divina, pois entendemos por instituição divina apenas a Ceia do Senhor e o Batismo. Isso porque somente estes são sacramentos por ordenamento de Jesus. Dizer que algo é sagrado, divino é afirmar sua imutabilidade, sua invariabilidade, mesmo diante de mudanças históricas, humanas.

Sendo assim, não é possível que a família seja uma instituição divina. A Bíblia não afirma isso! Se a família fosse de fato divina, sagrada, ou seja, indissolúvel, intocável, como os sacramentos da Ceia e o do Batismo, sem a possibilidade de sofrer mudanças a partir da vontade humana, como explicar tantas transformações encontradas no interior da família no decorrer do processo histórico da humanidade? Confessamos que desconhecemos uma resposta satisfatória a esta questão, se partirmos da concepção de que a família é uma instituição divina.

É por acreditar que a família é uma instituição divina é que muitos cristãos e cristãs têm defendido também que existe um padrão divino para as relações familiares. Pensar que cada membro da família tem funções predeterminadas e imutáveis é uma proposta que exclui, limita e tolhe uma busca mais plena e interativa de relacionamentos conjugais e familiares que promovam a vida. Essa idéia de padrão divino para as relações familiares ainda dificulta a compreensão da graça, que proporciona ao ser humano um relacionamento mais próximo e livre com Deus e com o semelhante.

Acredito que, em vez de lutarmos por um “padrão divino” para a família, seria mais bíblico encontrar caminhos para nossas famílias em que a vida e o bem-estar de seus membros fossem priorizados. Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo é cumprimento de toda a Lei (Mateus 22.37-40). A proposta, portanto, desta pastoral, é mostrar que a Bíblia, ao narrar relações familiares, não apresenta um modelo que deva ser seguido como uma proposta divina no decorrer de toda a história humana. Diferentemente disto, a Bíblia reafirma que a família está envolvida no processo histórico da humanidade e, nesse sentido, sofre mudanças e se reorganiza, muitas vezes, sob novas formas. Por isso, ao lermos o Antigo Testamento, podemos perceber que foi muito tranqüilo para o povo de Israel viver sob uma organização familiar poligâmica (Gênesis 16.3; 1 Samuel 1.1-2; 2 Samuel 5.13). Já no Novo Testamento, a carta a Timóteo traz uma nova orientação para o dirigente da comunidade: O diácono seja marido de uma só mulher... (1 Timóteo 3.12).

Dessa forma, não precisamos nos espantar ao encontrar no seio de nossas Igrejas famílias constituídas por avôs e seus netos e netas, mães sozinhas com seus filhos, famílias adotivas (com crianças que não foram geradas biologicamente pelo casal), casais sem filhos, amigos que decidem morar juntos, etc. Podemos ver nesses casos não uma distorção da realidade familiar, mas novas formas de ser e estar juntos. Gosto muito de uma frase, dita por uma criança e recontada por Déa Kerr Afini, que diz: “Lar é uma porção de gentes que se amam”. Essa, sim, é a verdadeira constituição familiar, segundo o ensino do Mestre, no qual os laços de amor são a real fonte e fundamento da vida.

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