sexta-feira, 23 de julho de 2010

O que é Fenomenologia?

Otávio Júlio Torres

Tratar a Fenomenologia como filosofia é uma tarefa que excede à simples compreensão do termo em caráter terminológico.

Em uma análise etimológica, a palavra Fenomenologia é o estudo ou a ciência do fenômeno, de tudo aquilo que aparece. Sua raiz vem do grego phainomenon, o que aparece e brilha. A partir dessa origem, faz Fenomenologia qualquer pessoa que descreva a maneira de uma coisa aparecer. No entanto, a história do termo mostra-se bem mais esclarecedora do que sua mera análise etimológica.

O termo Fenomenologia já aparece nas filosofias de Kant e Hegel. Kant utiliza-se dessa palavra em 1770, numa carta a J. H. Lambert, para designar a disciplina propedêutica que deve preceder a metafísica. Mais adiante, em 1772, reutiliza o termo na carta que escreve a Marcus Herz, para esboçar o plano da obra que, após um longo período, aparecerá em 1781, sob o título de Crítica da Razão Pura. Segundo a carta de Kant a Herz, a primeira seção da referida obra deveria intitular-se A Fenomenologia Geral, embora Kant a tenha chamado de Estética Transcendental. Todavia, uma fenomenologia não está ausente na crítica kantiana.

Ao fazer uma investigação da estrutura do sujeito e das funções do Espírito, Kant se dá por tarefa descrever o domínio do aparecer ou o fenômeno, com objetivo de limitar as pretensões do conhecimento que, por atingir apenas o fenômeno, não pode jamais almejar se tornar conhecimento do ser ou do absoluto.

Todavia, é em Hegel, na Fenomenologia do Espírito (1807), que o termo entra definitivamente na tradição filosófica. A fenomenologia de Hegel difere da de Kant no que diz respeito à concepção das relações entre o fenômeno e o ser ou o absoluto. Segundo Hegel, a fenomenologia é uma filosofia do absoluto, do Espírito, ao permitir uma retomada do caminho que o Espírito percorre no desenrolar da História. A fenomenologia, pois, para Hegel, não tem por escopo construir uma filosofia na qual a verdade do absoluto se enuncia fora ou à parte da experiência humana, mas mostrar como o absoluto está presente em cada momento dessa experiência.

Até aqui, fica evidente que a fenomenologia trata-se apenas de uma propedêutica à ontologia; sua tarefa é revelar todo o material que o filósofo terá de pensar, para esclarecer sua ordem oculta e dizer sua significação. Por isso, não seria a fenomenologia kantiana nem a hegeliana que se perpetuariam no século XX, sob a forma da filosofia que traz o nome de Fenomenologia. É Edmund Husserl (1859-1938) o verdadeiro iniciador desse movimento. Husserl deu conteúdo novo a uma palavra já antiga[1]. É baseado, portanto, em Husserl, que Merleau-Ponty desenvolverá sua filosofia.

1.2. A fenomenologia como filosofia

A Fenomenologia, como filosofia, estuda as essências, incluindo todos os problemas que as definem. Pretende repor o estudo das essências na existência. Assim, as essências devem ser compreendidas a partir de suas próprias facticidades[2]. Nessa direção, Husserl define a Fenomenologia como uma filosofia transcendental, na medida em que coloca em suspenso todas as afirmações da atitude natural e das ciências particulares.

É uma filosofia para qual o mundo é uma presença que já está sempre aí, antes mesmo da reflexão. Todo o esforço fenomenológico, portanto, consiste em reencontrar esse contato ingênuo com o mundo, para, somente depois, construí-lo filosoficamente. Por isso, é uma filosofia que pretende ser uma ciência exata, um relato do espaço, do tempo, do mundo vividos, por exemplo. É a tentativa de uma descrição direta da experiência humana, na sua relação com o mundo, tal como ela é, sem nenhuma consideração à sua origem psicológica ou a explicações causais que as ciências possam fornecer. Ou seja, trata-se de descrever, não de analisar ou explicar. É uma filosofia que pretende voltar "às coisas mesmas".

Retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente, como a geografia em relação à paisagem – primeiramente nós aprendemos o que é uma floresta, um prado ou um riacho.[3]

Trata-se, diz Merleau-Ponty, de uma descrição pura, que exclui a reflexão e a explicação científica.

“O real deve ser descrito, não construído ou constituído.” Isso quer dizer que não posso assimilar a percepção com as sínteses que são da ordem do juízo, dos atos e da predicação.[4]

É uma negação de quaisquer sínteses ou resultados propostos pelas ciências. O mundo ou o real, deixa de ser um objeto constituído, um resultado científico, para ser a base, o meio natural e o campo de todos os pensamentos e percepções humanas.

Para Merleau-Ponty, retornar às coisas mesmas não se identifica, portanto, com o objeto da ciência, nem se alcança pelo esforço da consciência interior humana. Mas é a volta ao mundo anterior à reflexão, ao irrefletido, ao mundo vivido, sobre o qual a ciência se constrói.

Assim, Merleau-Ponty parte do Lebenswelt husserliano para construir sua filosofia. Reconhece que o "retorno ao mundo da vida" é a contribuição mais importante de Husserl para a sua filosofia.



[1] André Dartigues. O que é fenomenologia, p.1-3

[2] Por facticidade, Merleau-Ponty quer expressar a presença fenomenal, experimental da coisa percebida. É a facticidade que permite a vivência experimental da essência das coisas.

[3] Maurice Merleau-Ponty. Fenomenologia da percepção, p.4

[4] Ibidem, p.5

3 comentários:

  1. Ainda permanece obscuro, pra mim, a diferença entre fenomenologia e hermenêutica. também me é estranha a afirmação de que fenomenologia se oporia a positivismo, por ser aquela uma descrição da essência do fenômeno. Não é a posição positivista também uma perspectiva descritiva de um fato?

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    1. Uma possível resposta a essa dúvida no livro "Convite à Filosofia", de Marilena Chauí:

      "A pergunta “O que é?” não se refere a uma descrição dos processos mentais e físicos que nos fazem lembrar, imaginar, sentir ou perceber. Essa pergunta se refere à descrição do sentido da memória, da imaginação, da sensação, da percepção, isto é, se refere à essência delas, independentemente de nossas experiências psicológicas pessoais. A fenomenologia não indaga, por exemplo, se uma certa idéia ou uma certa opinião são causadas pela vida em sociedade, mas pergunta: O que é o social? O que é a sociedade? As respostas a essas perguntas formam as significações ou essências e são elas o conteúdo que a própria razão oferece a si mesma para dar sentido à realidade."

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